quarta-feira, 28 de maio de 2008

VERDADE E UTILIDADE DA CIÊNCIA EM FRANCIS BACON



ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


No segundo apêndice de sua obra “Os filósofos e as máquinas”, o intérprete Paolo Rossi trabalha a verdade e a utilidade da ciência em Francis Bacon, dando ênfase inicial sobre a concepção renascentista de ciência, das máquinas e do trabalho humano na visão de Dilthey e Mondolfo (dois intérpretes de Bacon). O foco de Mondolfo está na importância de produção prática e experimental para o próprio conhecimento teórico e para Dirthey o foco está pela união do trabalho material como espírito da pesquisa científica.
Em todas essas concepções e outras semelhantes, predomina sempre a idéia de uma separação e oposição entre o trabalho manual e o intelectual, ou, pelo menos Bacon, que quer “saber para poder”, a idéia de uma relação que é subordinação do trabalho manual ao intelecto, como aplicação das conquistas teóricas, segundo Mondolfo (ROSSI, 1923, P.122). O intérprete cita Liebig, um químico e filósofo espiritualista que interpreta o pensamento de Bacon como expressão típica de um “vulgar utilitarismo” e também outros intérpretes como Fonsegrive, Sortais, Levi e Anderson que insistiram nas passagens em que Bacon fala da verdade como “supremo bem” e modificaram as polêmicas conclusões de Liebig que põe em evidencia o caráter “universalista e humanista” do utilitarismo do filósofo (Bacon).
Intérpretes que oscilaram entre a admiração pelas aplicações práticas da ciência baconiana e, de outro, a veneração por uma verdade desinteressada. Esta tese oscilatória pode ser expressa por Levi, que afirma: “A mente de Bacon (...), oscila entre duas posições diferentes: por um lado, dirigindo-se à aplicação prática da ciência, preza-a pela sua utilidade humana; por outro, tende a afirmar que a consciência tem valor por si” (ROSSI, 1923, P.124). Observa-se um valor elevado da ciência e da verdade em Bacon, ou seja, um “valor por si” do conhecimento, convicto de que ipsissimae res sunt veritas et utilitas (verdade e utilidade são a mesma coisa) para a ciência de Bacon (BACON, 1979, P.83).
Rossi tenciona nesta obra esclarecer o significado que se deve atribuir a uma expressão de Bacon, contida no parágrafo 124 do Novum Organum, freqüentemente interpretada com pouca exatidão: ipsissimae res sunt veritas et utilitas. Verdade e utilidade é a mesma coisa para a ciência de Bacon, isto é, o filósofo sustenta uma identidade entre teoria e prática, verdade e utilidade, ciência e potência, considerando extremamente perniciosa uma contraposição entre tais termos. Bacon não compreende a filosofia como um “estério deserto”, idéia esta que se assemelha em sua concepção ao saber tradicional desde os pré-socráticos até Telésio, mas sim a uma união entre saber e operar, teoria e prática, discurso lógico e técnicas experimentais.
O intérprete afirma que Bacon deseja dar fundamentos as bases de uma enorme utilidade, de uma reforma lógica e vê nisto a necessidade de conscientizar os homens acerca da identidade entre progresso na teoria e na prática, entre potenciação dos instrumentos cognoscitivos e potenciação das capacidades operativas do homem. O autor do Novum Organum situara a soberania do homem no conhecimento e, afirma que o fim da ciência é servir à vida, identifica o homem como “aquilo que o homem conhece” sendo assim, reafirma a dependência do homem diante do saber científico. Os enigmas postos pelo mito da Esfinge, segundo Rossi, são interpretados por Bacon, sendo o enigma relativo à natureza e ao que se refere ao homem, é respondido por Bacon em sua frase: “só conhecendo a natureza humana será possível adquirir domínio sobre ela”.
“Nas Partis instaurationes delineatio et argumentum, no Cogitata et visa e posteriormente em Novum Organum, Bacon se preocupou em responder a uma objeção facilmente previsível, e que lhe podia ser colocada do ponto de vista das filosofias tradicionais: não é contemplação do verdadeiro uma coisa mais excelente e digna do que qualquer descoberta prática, por importante e útil que ela seja? Para quem dedica à meditação todo seu amor e sua veneração, a contínua insistência nas obras, nos resultados práticos, nas “artes” não pode com justiça parecer excessiva, desagradável e importuna? Esse deter-se nas coisas particulares não desvia a mente da serenidade e da tranqüilidade que são próprias da ciência?” (ROSSI, 1923, P. 127).

Para Paolo Rossi, é estranho que os que falam em “utilitarismo” ou “tecnicismo”, baconiano tenham freqüentemente fundado suas argumentações na base das mesmas perguntas a que Bacon tentou responder. Bacon, porém configura sua resposta de duas maneiras distintas: Na Partis instaurationes secundae delineatio, Bacon afirma que quem protesta, em nome da vida contemplativa, protesta contra si mesmo, porque a pureza da contemplação e a invenção e construção das obras se fundam sobre as mesmas coisas e são fruídas em conjunto. No Cogitata et visa e no Novum Organum, a resposta é que o império do homem reside apenas na ciência e que o homem pode apenas pelo que sabe e arremata que como na religião exige-se fé com obras, da mesma forma na filosofia natural exige-se que a ciência seja demonstrada com resultados práticos.
Assim nas palavras de Bacon, o intérprete compreende as verdadeiras marcas que o filósofo estabelece postas pelo Criador sobre as criaturas, isto é, as obras devem ser consideradas mais como garantias da verdade do que por causa das comodidades da vida. Bacon sustenta com clareza a “verdade e utilidade como mesmíssima coisa”, sustentação que tanto recebeu interpretações conflitantes. Rossi cita Spedding, defensor de maior autoridade que desistiu de justificar esse emprego do termo ipssimae (da mesma coisa) por parte de Bacon.
Rossi assume a briga e justifica a tradução com o parágrafo 13 de segundo livro do Novum Organum, em que o filósofo compreende verdade e utilidade ser a mesma coisa referente ao homem e ao universo, mas diferem apenas como o aparente e o existente, o externo e interno. No parágrafo 20, o intérprete justifica pela utilização do termo ipissimus e resgata a definição de calor que é ao mesmo tempo especulativa e operativa se produzir num corpo natural um movimento dotado das características indicadas infalivelmente, gerar-se-á calor. Ambos os termos (verdade e utilidade) na filosofia baconiana apresentam-se juntas e idênticas, ou seja, a fecundidade da verdade científica depende do seu caráter de plena verdade e das duas intenções humanas gêmeas (escreve Bacon), a ciência e a potência, coincidem numa única, e a ignorância das causas gera o fracasso das obras.

Portanto a cisão entre os dois termos “saber e operar”, depende, segundo Bacon, do fato de que as operações humanas estão atualmente confiadas a uma “prudência” imediatista e a uma série de preocupações de caráter empírico e sem o apoio e orientação de um método desprovido de qualquer generalidade ou universalidade (ROSSI, 1923, P.134). Segundo Bacon perde qualquer sentido uma ciência renovada que tenha superado a situação de incerteza operativa e arbitrariedade teórica que caracteriza todo o saber atual. Essa incerteza e arbitrariedade são ao mesmo tempo efeito e causa da cisão entre verdade e utilidade. Rossi explica, debruçado na filosofia de Bacon a necessidade de alcançar uma definição de homem (ministro e intérprete da natureza), formular um novo método científico, fundar uma história natural que esteja na base da nova história reorganizando o corpus inteiro do saber.
Bacon almejava a garantia da absoluta operacionalidade do saber científico e da plena coincidência entre saber e operar, significando a via da verdade e da potência, que é a mesma escrita pelo filósofo em Aphorismi et consilia, que encontra as formas das coisas e do conhecimento. Das formas deriva a contemplatio vera e a operatio libera (contemplação da verdade e o saber livre). Mario Mamlio Rossi diz que a diferença entre utilitarismo da ciência moderna e a de Bacon consiste no seguinte: a ciência moderna não diz que a ciência deve servir, mas que a ciência realmente serve; o utilitarismo moderno prossegue M. M. Rossi, não admite (como Bacon) que a ciência possa ser pura contemplação teórica, de forma alguma influenciada pelas finalidades e necessidades humanas. Paolo Rossi não concorda com M. M. Rossi quanto à adequação do termo utilitarismo para este caso, nem no que diz respeito a sua avaliação, com base nessa distinção, como “filósofo da técnica”.
Bacon é arauto, indicador de um novo destino. De fato nenhuma constatação pode eliminar, em qualquer posição de tipo pragmática, essa recusa de certa maneira de filosofar, nem esse apelo a uma escolha entre dois tipos de verdade. Neste caso Bacon, assim como no de Dewey, a tese de uma identidade da verdade-utilidade se funda, de um lado, numa refutação das filosofias e, de outro, numa avaliação de técnica e das “artes mecânicas” muito diferentes daquela que foi própria do mundo clássico. As observações aqui pretendem dar relevo dentro do complexo entrelaçamento de posições e problemas nos quais os intérpretes não insistiram o bastante.
Por fim, Paolo Rossi, tem presente nestas teses sobre o utilitarismo baconiano, a árdua missão de contradizer errôneas afirmações que tantas vezes são repetidas na filosofia de Bacon. Se existe uma subordinação da ciência à técnica em Bacon, esta existe para manter íntegra e sem margens para conclusões fantásticas, ou seja, compreender uma subordinação da verdade à utilidade, do saber ao operar nas palavras conclusivas do intérprete que laboriosamente explica a filosofia deste arauto da ciência moderna e espantam possíveis e impossíveis contradições a cerca de suas reais pretensões a cerca da ciência.

REFERÊNCIAS


ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfred Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino-Português. 2. ed. Rio de Janeiro: MEC/DNE, 1956

BACON, Francis. Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 b.

ROSSI, Paolo. Bacon e Galileu: os ventos, as marés, as hipóteses da astronomia. In:_____. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da Revolução Científca. São Paulo: UNESP, 1992.

ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas 1400-1700. In:_____. Verdade e utilidade da ciência em Francis Bacon. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Um comentário:

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