quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Do corpo à psique no período da Guerra Fria.




Antonio Macedo dos Santos

Charles Fernando Gomes
Gilberto Alexandre da Luz

Gisele de Goes Fontes Noguchi




1. INTRODUÇÃO




Um espetáculo literalmente bárbaro que retrata a animalidade instintiva do homem, ou como diria Freud sua pulsão de morte é a guerra. A guerra é uma obra de arte que desfigura a realidade e protagoniza a selvageria, a barbaria e a violência em seu grau extremo protagonizada pelo homem. Aquém de nossa compreensão racional, mas não obstante de nosso cotidiano. Nesta obra de arte (que é a guerra) o cenário se compõe de elementos estratégicos e maléficos incrementados pelo resultado de corpos mutilados, violentados, ensangüentados e abandonados. O pincel neste contexto é substituído por uma arma de fogo que possa ser a mais potente possível na técnica de matar o maior número de inimigos. A tinta, a qual presta sua importância, são os oceanos de sangue derramados no solo por feridos em emboscadas e ciladas, pois, na guerra não há piedade, mas vencedores e derrotados o que não isenta os primeiros (vencedores) de obterem outra forma de derrota, que é a derrota da racionalidade e da evolução da espécie, que nesta trama retrocede seu processo evolutivo.
Toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo e da psique. Na guerra, são os corpos que infligem à violência, mas também a psique juntamente com os corpos que sofrem a violência. Esta face corporal e psíquica da guerra se confunde tão intimamente com o próprio fenômeno bélico que é difícil separar a história da guerra de uma antropologia histórica das experiências corporais e psíquicas induzidas pela atividade bélica.
Para nos restringirmos ao Ocidente e a seu contato com outras áreas culturais, às quais exclusivamente nos ateremos aqui, observemos em primeiro lugar que no decurso da primeira metade do século XX poucos ocidentais puderam de todo subtrair seu corpo à experiência da guerra. Por ocasião dos dois conflitos mundiais, o combate assumiu assim o sentido de uma obrigação generalizada. Sem dúvida, as guerras revolucionárias e imperiais, ao lançar o princípio do levante em massa e a seguir, em 1798, o de uma conscrição progressivamente imitada pelos Estados europeus, tinham provocado uma primeira generalização da experiência corporal do combatente. Mas, de fato a mobilização dos homens tinha sido muito incompleta (1.600.000 mobilizados na França entre 1800 e 1815). Em seguida, após uma volta às normas pelo menos parcial, os anos 1860 e as décadas seguintes foram marcados, sob o impulso do modelo prussiano, por uma nova etapa de militarização das sociedades européias. Mas, é com e a partir dos dois conflitos mundiais que se produz verdadeiramente a transposição limiar (cf. ROUZEAU, 2008, p. 365-367).




2. DO CORPO À PSIQUE




Na quarta parte do livro História do Corpo intitulada Sofrimentos e violências, especificamente no terceiro item, Rouzeau trabalha sobre o tema do corpo à psique. O autor afirma que a guerra provocava importantes desordens psíquicas nos indivíduos e que os médicos militares do começo do século XIX já sabiam, embora dessem a essas realidades (ainda mal conhecidas) outros nomes que não os de hoje, como nostalgia ou vento da bala de canhão, por exemplo. Mas foram os conflitos modernos que ao mesmo tempo aumentaram consideravelmente o número de feridos psíquicos e forçaram os serviços de saúde das forças armadas a levarem em conta o seu caso e aplicar medidas terapêuticas (cf. ROUZEAU, 2008, p. 387).
Se a guerra russo-japonesa de 1904-1905 vê surgirem os primeiros cuidados psiquiátricos de combatentes, é de novo a guerra de 1914-1918 que vai constituir a grande ruptura: do lado francês, por exemplo, as baixas psíquicas se elevam a 14% do total das indisponibilidades. A confusão do vocabulário mostra, no entanto, as das representações: os médicos franceses falam de “comoção”, seus homólogos britânicos de Shell-schock. Isto indica que tanto estes como aqueles imaginam que os distúrbios psíquicos, que devem tratar, estão ligados a desordens neurológicas provocadas pela violência das explosões. Já os médicos alemães, através da noção de Kriegsneurosen (neuroses de guerra), posta circular desde 1907 ou ainda a de Kriegshysterie (histeria de guerra), percebem mais claramente que os distúrbios mentais dos combatentes têm como origem um sofrimento de ordem psíquica, e não neurológica. Deste modo, malgrado a hesitação dos tratamentos, é no decorrer da Grande Guerra e no quadro dos exércitos aliados que se elaboraram os primeiros princípios terapêuticos visando orientar toda a psiquiatria assim chamada “da frente” até nossos dias, a qual consistia particularmente em intervir de imediato e conservar o soldado atingido na proximidade dos locais de combate, favorecendo nele a espera da cura (ROUZEAU, 2008, p. 388).
Esses princípios são descobertos pelos norte-americanos a partir de 1942-1943 na África do Norte e no Pacífico: terão de encarar a hospitalização de mais de 900.000 “baixas psíquicas”, e mesmo certos picos espetaculares no decurso de 1944, ou mesmo 1945, como em Oknawa, onde as baixas desse tipo foram multiplicadas por dez. Devem, além disso, admitir a normalidade desse tipo de distúrbios. A quase totalidade dos soldados se vê atingida por ele depois de uma exposição prolongada ao perigo, como o confirmam as experiências da Coréia e do Vietnã (200 a 240 dias de presença em zonas de operações, a se dar crédito às normas do exercito norte-americano) .
As forças de manutenção da paz, no final do século XX, devem também beneficiar-se com um atendimento psiquiátrico tanto mais intenso quanto como mais freqüente surgem os distúrbios psíquicos entre esses “combatentes” de um novo tipo que podem servir de alvo, mais não podem usar suas armas, a não ser em função de regras muito estritas para poder dispará-las. Sentem por isso a impressão de não estarem na guerra nem combatendo, mais no centro de um “massacre” do qual se sentem as vítimas preferenciais (cf.ROUZEAU, 2008, p. 388-389).
A psiquiatria militar contemporânea indica-nos que, embora menos contundentes, outros espetáculos visuais podem ocasionar graves sofrimentos psíquicos: por exemplo, os cavalos feridos ou mortos, que facilmente evocam a sorte dos homens em vista da contigüidade antropológica entre os primeiros e os segundos; as ruínas, que também remetem à corporeidade dado que o habitat é o envoltório protetor do corpo humano; as florestas destruídas pelo fogo cerrado, com a árvore se tornando por sua vez metáfora do corpo humano. O ouvido é também solicitado, por exemplo, quando se ouvem, insuportáveis, os gritos dos feridos. O ouvido fica saturado com o estrondo das explosões, cuja vibração pode atravessar o corpo a tal ponto que cria depois de certo tempo um torpor particular que em induz muitos soldados ao sono, às vezes sem querer, sob o martelar dos tiros. O tato também fica comprometido: assim, quando não se pode evitar passar por cima do corpo de camaradas mortos ou feridos – situação freqüente nas trincheiras e corredores estreitos da Grande Guerra. Ou quando são projetados sobre sua própria pele fragmentos de carne ou de ossos provenientes de camaradas feridos perto deles (cf.ROUZEAU, 2008, p. 390).
Muitos distúrbios psíquicos, ligados a essa experiências sensoriais, se inscreveram depois no longo prazo. Entre as tropas britânicas, que tomaram parte na guerra da Malvinas em 1982, foram registradas 50% de neuroses traumáticas cinco anos depois do fim dos combates. Os norte-americanos chamaram de PTSD (post traumatic stress disorders) as neuroses que surgiram depois do combate, geralmente após um período de latência de alguns meses; os franceses preferem falar de “trauma” para designar espetáculos – geralmente visuais – que “arrombaram” a psique dos combatentes. Muitas vezes um simples olhar, ou de um inimigo que quis te matar ou que se quis matar, e através do qual o sujeito “se viu morto”, em um súbito desaparecimento da “ilusão de imortalidade”. Seja como for, hoje se sabe que o custo da experiência do combate moderno não é apenas de ordem corporal. Tudo acontece como se as formas do combate no século XX houvessem ultrapassado as capacidades psíquicas de adaptação e de resistência dos soldados encarregados de executá-las (cf.ROUZEAU, 2008, p.390-391).





3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O papa João Paulo II na encíclica Sollicitudo rei socialiso afirma que “o desenvolvimento é o novo nome da paz” na era moderna e prossegue: Um desenvolvimento somente econômico não está em condições de libertar o homem; pelo contrário, acaba até por escravizá-lo mais. Um desenvolvimento que não abranja as dimensões culturais, transcendentes e religiosas do homem e da sociedade menos ainda contribui para a verdadeira libertação, na medida em que não reconhece a existência de tais dimensões e não orienta para elas as próprias metas e prioridades. O ser humano será totalmente livre só quando for ele mesmo, na plenitude dos seus direitos e deveres; o mesmo se deve dizer da sociedade inteira. Assim, nas palavras do pontífice, o obstáculo principal a superar para uma verdadeira libertação é o pecado, roborado pelas estruturas que ele suscita à medida que se multiplica e se expande .
Na realidade, se a questão social adquiriu uma dimensão mundial, foi porque a exigência de justiça só pode ser satisfeita neste mesmo plano. Não atender a tal exigência poderia propiciar o irromper duma tentação de resposta violenta, por parte das vítimas da injustiça, como acontece na origem de muitas guerras. As populações excluídas da repartição equitativa dos bens, destinados originariamente a todos, poderiam perguntar-se: por que não responder com a violência a quantos são os primeiros a tratar-nos com violência? E se a situação se examinar a luz da divisão do mundo em blocos ideológico já existente em 1967? Como as conseqüentes repercussões e dependências econômicas e políticas que isso acarreta o perigo.
Concluímos que as conseqüências de semelhante estado de coisas manifestam-se no agravamento de uma chaga típica e reveladora dos desequilíbrios e dos conflitos do mundo contemporâneo, como dizia João Paulo II. Os milhões de refugiados das guerras, as calamidades naturais, as perseguições e as discriminações, de todas as espécies, privaram o homem de sua própria casa, do trabalho, da família e da pátria. A tragédia destas multidões se reflete no rosto arrasado de homens, mulheres e crianças, que, num mundo dividido e que se tornou inospitaleiro, não conseguem mais encontrar um lar. Lares seqüestrados pelas atrocidades geradas pelas guerras, que não só capturam lares, mas também vidas, famílias e utopias que possui a humanidade, destituindo-a de racionalidade, perturbando sua sanidade psíquica e seqüestrando seu sentido de vida para alcançar a felicidade.





REFERÊNCIA


ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfred Bosi. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


BURNS, Edward Mcnall. História da civilização ocidental. Trad. Lourival Machado; Lourdes Machado. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Globo, 1952.


CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo 3: As mutações do olhar. O século XX. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.










A ERA DOS DIREITOS & O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE



A ERA DOS DIREITOS

Charles Fernando Gomes[1]

1. INTRODUÇÃO

            Na obra O tempo da memória, escreve Bobbio: Entre as várias formas de pacifismo, religioso, moral, político, minhas preferências voltaram-se para o pacifismo jurídico, segundo o qual a solução pacífica dos conflitos depende da presença de um Terceiro acima das partes, em condições não apenas de julgar quem tem e quem não tem razão, mas também de fazer observar em última instância a própria decisão. Em relação à pergunta sobre como é possível uma cidade não violenta, ou, menos violenta do que aquela que marcou nossa história milenar, entre os dois extremos – da ação diplomática mais facilmente praticável, mas insuficiente, e da educação para a paz, certamente mais eficaz e mais difícil de realizar – dei preferência por razões ligadas a minha formação cultural e devido a uma natural tendência para acreditar que a virtude esta no meio, àquela que defende a criação de novas instituições que aumentem os vínculos recíprocos entre os Estados, ou, o fortalecimento daquelas, entre as velhas, que deram bons resultados ate agora. Estou plenamente consciente de que se trata de uma meta ideal. Mas se não propusermos uma meta, não estaremos nem ao menos a caminho dela (cf. BOBBIO, 1997, p.161).    
A obra supracitada é uma autobiográfica do autor, esta que resguarda os maiores anseios do intelectual no que tange a necessidade de novos processos civilizatórios do Estado para a promoção da paz entre os homens. Na obra A era dos direitos, mas especificamente na primeira parte (que é nosso foco), Bobbio assegura que as constituições modernas baseiam-se na proteção dos direitos do homem, proteção esta que depende da paz e da democracia. A paz, os direitos do homem e a democracia constituem situações interdependentes onde ambas são pressupostas mutuamente. Bobbio prefigura três premissas baseadas em seus estudos que irão alicerçar as demais conclusões, são: os direitos naturais são históricos; e eles nascem no início da era moderna tornando-se indicadores do progresso histórico. O Estado Moderno ocasionou (dentre outras coisas) uma mudança no modo de encarar a relação política, descentralizando a figura do soberano, ocasionando a consideração dos direitos do cidadão.
O autor sustenta que gênese da afirmação dos direitos do homem teve origem de uma inversão de perspectiva. A relação que antes se centrava na pessoa do soberano é substituída pela relação cidadãos/Estado, destituindo a antiga estrutura súditos/Soberano. Desta dialética que fora evoluída e transformada, origina-se os direitos do cidadão, que será pertencente ao Estado, e este cederá espaço para o reconhecimento dos direitos do cidadão cosmopolita semelhantemente a Declaração Universal dos direitos do homem.
Para Bobbio, os direitos são oriundos da evolução histórica. Classificou-nos como: direitos em direitos de primeira geração (representados pelos direitos civis; as primeiras liberdades exercidas contra o Estado); segunda geração (representados pelos direitos políticos/sociais bem como seu perdão em razão do indulto, direitos de participar do Estado), terceira geração (econômicos, sociais e culturais; cujo mais importante seria o representado pelos movimentos ecológicos) e quarta geração (exemplificados pela pesquisa biológica, defesa do patrimônio genético etc.). Compreendemos diante desta classificação do autor, que os direitos nascem de acordo com o progresso técnico da sociedade, ou seja, as fases ou gerações refletem as evoluções tecnológicas da sociedade, que geram necessidades aos indivíduos (cf. BOBBIO, 1990, p. 36-37).

2. OS TRÊS TEMAS DE BOBBIO ACERCA DE UM FUNDAMENTO ABSOLUTO

No primeiro capítulo, Bobbio expõe três temas: sentido do fundamento absoluto dos direitos do homem, a possibilidade de um fundamento absoluto e, caso seja este possível e também desejável. Há, no entanto, o direito positivado e o direito que, embora possua legitimidade, é apenas desejado. Bobbio (como também é filósofo) escolhe analisar a possibilidade de um fundamento absoluto de maneira a enfrentar um problema de direito racional ou crítico (direito natural, no sentido restrito). Analisando este problema do fundamento absoluto, Bobbio conclui que este fundamento absoluto[2] (inquestionável), defendido pelo jusnaturalismo, é impossível e infindável atualmente (cf. BOBBIO, 1990, p. 36-37).
            No que diz respeito ao segundo tema, são elevadas quatro dificuldades: primeiro a expressão "direitos do homem" é muito genérica ocasionando ambiguidade; segundo é que os direitos do homem são mutáveis de acordo com a época histórica, o que prova e inexistência de direitos fundamentais por natureza; terceiro diz respeito aos direitos do homem ser heterogêneos, oscilam diferenças e divergem entre si. Assim, seria mais aceitável que os direitos do homem possuíssem diversos fundamentos. Bobbio considerava poucos os direitos fundamentais, devido a entrarem repetidamente em concorrência com outros direitos tidos como igualmente fundamentais tornando difícil a tarefa de eleger. Pelas razões expostas, Bobbio afirma que os direitos que têm eficácia diversa não podem possuir o mesmo fundamento e, ainda, que os direitos fundamentais não podem ter um fundamento absoluto (cf. BOBBIO, 1990, p. 42-44).

3. DECLARAÇÕES MODERNAS

           As declarações modernas no que tange os direitos do homem trazem os chamados direitos sociais, além das liberdades tradicionais. Estes exigem obrigações negativas, um não fazer; já os sociais só se realizam mediante a realização de obrigações positivas. São diversos e antinômicos entre si, uma vez que não podem coexistir integralmente. O problema estaria, então, em proteger os direitos do homem (questão política), e não tanto em justificá-los (filosofia). Logo, a crise dos fundamentos deve ser superada, de acordo com os casos concretos e seus diversos fundamentos, e não em um único fundamento (cf. BOBBIO, 1990, p. 42-44).
Analisada a problemática atual, Bobbio observou a impossibilidade de definir ou fundamentar a natureza dos direitos do homem e a incapacidade de saber qual a maneira mais eficaz de defendê-los. Não são mais problemas filosóficos e nem jurídicos, ou seja, a dificuldade da concretização dos direitos do homem não seria filosófico, tampouco moral ou jurídico, mas seria um problema dependente do desenvolvimento global da sociedade. Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são universalmente respeitados a partir do momento em que seus fundamentos são reconhecidos universalmente. No entanto, esse problema cede lugar ao problema da garantia dos direitos, uma vez que o problema do fundamento não é inexistente, e sim resolvido, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1848 (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44).
Os valores elencados pela Declaração possuem consenso geral acerca da sua validade. Nesse ponto, Bobbio enumera três modos de fundar valores: "deduzi-los de um dado objetivo constante", como a natureza humana, por exemplo, que possui maior garantia de validade; "considerá-los como verdades evidentes em si mesmas"; "descoberta que, num dado período histórico, eles são geralmente aceitos", que é o consenso (os valores são tanto mais fundados quanto mais aceitos). Esse último é histórico e, portanto, é o único que pode ser empiricamente comprovado, como se deu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Essa declaração representou um marco: foi a primeira vez que um sistema de princípios fundamentais de conduta humana foi livre e expressamente aceito pela maioria dos seus destinatários. Provou, com isso, que a humanidade partilha de valores comuns e que, por isso, existe certa universalidade de valores (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44).
Bobbio explica que esse universalismo de valores representou uma conquista lenta, que na história tiveram as declarações três fases: fase de teoria filosófica, fase do seu acolhimento pelo legislador e a fase em que a afirmação dos direitos se tornou universal e positiva. Essa última se deu com a Declaração de 1948, onde os princípios deverão ser efetivados concretamente e destinados a todos os homens, indistintamente. Mas Bobbio adverte que a Declaração Universal representa apenas o início de um longo processo, de supressão das dificuldades em implementar medidas eficientes de garantia internacional. Ainda, os direitos são históricos, e, portanto, a Declaração irá se amoldando aos novos valores absorvidos pela sociedade, de modo a não se cristalizar no tempo (cf. BOBBIO, 1990, p. 42-44).
Para Bobbio, dos direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um fundamento absoluto que torne um direito e seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão, em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras e, Bobbio, prossegue a um terceiro passo que é “conseguir de modo mais rápido e eficaz o reconhecimento e a realização dos direitos do homem. Diferente do dogma do racionalismo ético segundo a ilusão do jusnaturalismo, o qual os valores últimos não podem ser demonstrados como teoremas, mas para asseguração de sua realização (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44). O que é desmentido pela experiência histórica, reconhecidos em duas eras. A era dos direitos dos homens e posteriormente a década da declaração universal dos direitos do homem.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS     

            “Porque para sobreviver nos precisamos de padrões éticos globais?” Este foi o tema de palestra de Hans King em Davos. King é um teólogo ecumênico. Sua frase mais conhecida foi tema de um simpósio em 1989 pela UNESCO, em Paris, na qual ele diz: “Não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões”. Porém, como fazer junção entre as instituições e um diálogo comum? E qual seria a relação ética entre o discurso teológico de King e o discurso jurista e político de Bobbio? Caberia esta relação/discussão entre ambas (cf. KING, 1999, p. 9)?
            Bobbio semelhantemente a King, é intelectual e almeja paz no Estado por via de um caminho ética (seja o primeiro pelos direitos e o segundo por um projeto global). Ambos desbravam um caminho arenoso ao estabelecer práxis éticas seja estas por vias do direito ou por vias de um ensaio civilizatório global. A busca de uma forma de sobrevivência que não deixe ninguém de fora, isto é, que não seja excludente como nos revela a história desde sua gênese. Uma ética global, mas que alie paz entre as religiões através de um consenso intersubjetivo estabelecido por direitos feitos pelos e para os homens. Incluindo benefícios dos homens e não de uma parte elitizada. Alheia a dogmas e fundamentos históricos fabricados, mas fundante da dignidade e proteção do homem cosmopolita.  
Podemos observar que a exigência histórica revela a escrupulosa realização dos direitos proclamados, pois, os direitos do homem é uma meta desejável, mas não basta essa convicção necessita-se de condições favoráveis. Bobbio afirma que o problema fundamental em relação aos direitos dos homens, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. É inegável que há uma crise de fundamentos diagnosticados pelo autor, porém nossa tarefa é buscar em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode ser realizado.
            Por fim, este estudo é tarefa das ciências históricas e sociais. O problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas filosóficos, históricos, sociais, econômicos e psicológicos inerentes a realização do ser humano. O problema dos fins está associado ao problema dos meios. Isso significa que o filósofo não está sozinho e se obstinar-se a permanecer sozinho, condena à filosofia a esterilidade, pois, a crise de fundamentos é também aspecto da crise da filosofia (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44).       








1. INTRODUÇÃO

Na obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, mas especificamente no primeiro capítulo intitulado A natureza modificada do agir humano, Hans Jonas afirma que sua primeira questão é a respeito do modo como essa técnica afeta a natureza do nosso modo de agir, até que ponto ela torna o agir sob seu domínio algo diferente do que existiu ao longo dos tempos. Durante esses períodos, esclarece o autor, o homem nunca esteve desprovido de técnica. Assim, o centro de sua questão visa à diferença humana entre a técnica moderna e a dos tempos anteriores.
Toda ética até hoje seja como injunção direta para fazer ou não fazer certas coisas ou como determinação dos princípios de tais injunções, ou ainda como demonstração de uma razão de se obedecer a tais princípios compartilhou tacitamente os seguintes pressupostos inter relacionados: a condição humana, conferida pela natureza do homem e pela natureza das coisas; com base nesses fundamentos, pode-se determinar sem dificuldade e de forma clara aquilo que é bom para o homem; o alcance da ação humana, e, portanto da responsabilidade humana é definida de forma rigorosa. A argumentação que se segue pretende demonstrar que esses pressupostos perderam a validade e refletir sobre o que significa para a nossa situação moral (cf. JONAS, 2006, p. 29).
A violação da natureza e a civilização do homem caminham de mãos dadas. Ambas enfrentam os elementos. Uma, na medida em que ele se aventura na natureza e subjuga as suas criaturas; a outra, na medida em que erige no refúgio da cidade de sua vida humana. Amolda as circunstâncias conforme sua vontade e necessidade, e nunca se encontra desorientado, a não ser diante da morte. Assim, o homem confrontado com os elementos, continua pequeno, pois, não importa para quantas doenças o homem ache a cura, a mortalidade não se dobra a astucia (cf. JONAS, 2006, p. 32).

2. Características da Ética até o presente momento

Todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era (a exceção da medicina) eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a techne, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engaja-se o máximo esforço e a participação de humanos. A verdadeira vocação do homem encontrava-se alhures. Em suma, a atuação sobre objetos não humanos não formava um domínio eticamente significativo (cf. JONAS, 2006, p. 35).
 A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda a ética tradicional é antropocêntrica. Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “homem” e sua condição fundamental era considerada como constante quanto à sua essência, não sendo ela própria objeto da techne (arte) reconfiguradora. A ética tinha a ver com o  aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, como as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O homem bom era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cultivava em si a capacidade para tal, e que no mais conformava-se com o desconhecido(cf. JONAS, 2006, p. 35-36).
Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. “Ama a teu próximo a ti mesmo”; “Faze aos outros o que gostarias que eles fizessem a ti”; “Instrui teu filho no caminho da verdade”; “Almeja a excelência por meio do desenvolvimento e da realização das melhores possibilidades da tua existência como homem”; “Submete o teu bem pessoal ao bem comum”; “Nunca trate os teus semelhantes como simples meios, mas sempre como fins em si mesmos”; e assim por diante. Em todas essas máximas, aquele que age e o “outro” de seu agir sãos partícipes de um presente comum. Os que vivem agora e os que de alguma forma tem transito comigo são os que tem alguma reivindicação sobre minha conduta, na medida em que esta os afete pelo fazer ou pelo omitir. O universo moral consiste nos contemporâneos, e o seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. Com o horizonte espacial do lugar ocorre algo semelhante, no qual o que age e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos, como superior hierárquico e subalterno, como o mais forte e o mais fraco, e em todos os outros papéis nos quais os homens tem a ver um com os outros. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera da ação. Segue-se daí que o saber exigido ao lado da vontade moral, para afiançar a moralidade da ação, corresponde a esta delimitação: não é o conhecimento do cientista ou do especialista, mas o saber de um tipo que se encontra ao alcance de todos os homens de boa vontade[3] (cf. JONAS, 2006, p. 36).
Se uma ação é boa ou má, tal é inteiramente decidido no interior desse contexto de curto prazo. Sua autoria nunca é posta em questão, e sua qualidade moral é imediatamente inerente a ela. Ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários posteriores de um ato bem-refletido e bem-executado. O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; A pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente (cf. JONAS, 2006, p. 37).

2.1 NOVAS DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE

A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não se serre o galho sobre o qual se esta sentado? Mas “este” que aqui se senta e que talvez caia do precipício – quem é? E qual é o meu interesse no seu sentar ou cair (cf. JONAS, 2006, p. 39-40)?
Toda a ética tradicional contava somente com um comportamento não cumulativo. E a cumulação como tal, não contente em modificar o seu início até a desfiguração, pode até mesmo destruir a condição fundamental de toda a seqüência, o pressuposto de si mesma. Tudo isso deveria estar compreendido na vontade do ato singular, caso este deva ser moralmente responsável (cf. JONAS, 2006, p. 40). Sendo assim, o novo papel do saber na moral consiste numa ética que reconhece sua ignorância e obrigada o saber vigente a se autocontrolar frente ao excessivo poder humano que constitui a era tecnológica.    
A alteração acerca das substâncias dos fundamentos da ética consiste na procura não só do bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano. Nenhuma ética anterior (além da religião) nos preparou para um tal papel de fiel depositário – e a visão científica de natureza, menos ainda. Esta última recusa-nos até mesmo, peremptoriamente, qualquer direito teórico de pensar a natureza como algo que devamos respeitar – uma vez que ela a reduziu à indiferença da necessidade e do acaso, despindo-a de toda dignidade de fins. Entretanto, um apelo mudo pela preservação de sua integridade parece escapar da plenitude ameaçada do mundo vital. Devemos ouvi-lo, reconhecer sua exigência como obrigatória – porque sancionada pela natureza das coisas –, ou então devemos ver nele, pura e simplesmente, um sentimento nosso, com o qual devemos transigir quando quisermos ou na medida em que pudermos nos dar ao luxo de fazê-lo? A primeira alternativa, se tomada a sério em suas implicações teóricas, nos impeliria a estender a reflexão sobre as alterações mencionadas e avançar além da doutrina do agir, ou seja, da ética, até a doutrina do existir, ou seja, da metafísica, na qual afinal toda ética deve estar fundada. Isto é, Jonas inclui o cuidado com estes conceitos do bem humano e diz que deveríamos nos manter abertos para a idéia de que as ciências naturais não pronunciam toda a verdade sobre a natureza (cf. JONAS, 2006, p. 41-42).
Na nova era tecnológico o homo faber esta acima do homo sapiens. Assim, o triunfo do homo faber sobre o seu objeto externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo na constituição interna do homo sapiens, do qual ele outrora costumava ser uma parte servil. Em outras palavras, mesmo desconsiderando suas obras objetivas, a tecnologia assume um significado ético por causa do lugar central que ela agora ocupa subjetivamente nos fins da vida humana (cf. JONAS, 2006, p. 43).
O homem atual é cada vez mais o produtor daquilo que ele produziu e o feitor daquilo que ele pode fazer; mas ainda, é o preparador daquilo que ele, em seguida, estará em condição de fazer. Mas quem é ele? Nem vocês nem eu: importam aqui o ator coletivo e o ato coletivo, não ao ator individual e o ato individual; e o horizonte relevante da responsabilidade é fornecido muito mais pelo futuro indeterminado do que pelo espaço contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de outro tipo. Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública. Nunca antes a política publica teve de lidar com questões de tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão longas. De fato, a natureza modificada do agir humano altera a natureza fundamental da política (cf. JONAS, 2006, p. 43-44).

2.2 A cidade universal como segunda natureza e o dever ser Do homem NO MUNDO

Questões que nunca foram antes objetos de legislação ingressam no circuito das leis que a cidade global tem de formular para que possa existir um mundo para as próximas gerações de homens.
A presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível de onde partia toda idéia de dever referente a conduta humana: agora, ela própria tornou-se um objeto de dever, isto é, o dever de proteger a premissa básica de todo o dever, ou seja, precisamente a presença de meros candidatos a um universo moral no mundo físico do futuro;  isso significa, entre outras coisas, conservar este mundo físico de modo que as condições para uma tal presença permaneçam intactas; e isso significa proteger sua vulnerabilidade diante de uma ameaça dessas condições (cf. JONAS, 2006, p. 44-45).

2.3 VELHOS E NOVOS IMPERATIVOS

O imperativo categórico de Kant dizia: haja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei universal. Aqui, o “que tu possas” invocado é aquele da razão e de sua concordância consigo mesmo: a partir da suposição da existência de uma sociedade de atores humanos (seres racionais em ação), a ação deve existir de modo que possa ser concebida, sem contradição, como exercício geral, da comunidade. O imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: haja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra; ou, expresso negativamente haja de modo a que os efeitos da tua ação não seja destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida; ou, simplesmente: não ponha em perigo a condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra; ou, em um uso novamente positivos: inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer (cf. JONAS, 2006, p. 47-48).
Sendo assim o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade. Pois segundo Jonas, nós não temos o direito de escolher a não existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de colocá-las em risco. O novo imperativo clama por outra coerência: não a do ato em consigo mesmo, mas a dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana no futuro, isto é, seu imperativo se estende em direção a um previsível futuro concreto, que constitui a dimensão inacabada de nossa responsabilidade (cf. JONAS, 2006, p. 49-50).

3. O HOMEM COMO OBJETO DA TÉCNICA

A tese que vigora pauta-se nos novos tipos e limites do agir que exige uma ética de previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações com as quais elas tem de lhe dar. Vimos que estas são as situações que emergem das obras homo faber na era da técnica. Mas ainda não mencionamos a classe potencialmente mais funesta dessas obras de novas espécies. Situamos a techne apenas em sua aplicação no domínio não humano. Mas o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. Essa culminação de seus poderes, que pode muito bem significar a subjugação do homem, esse mais recente emprego da arte sobre a natureza desafia o ultimo esforço do pensamento ético, que antes nunca precisou visualizar alternativas de escolha para o que se considerava serem as características definitivas da constituição humana (cf. JONAS, 2006, p. 57).
Torne-se como exemplo o mais fundamental desses fatos, a mortalidade do homem. Quem alguma vez precisou se decidir sobre qual seria sua duração desejável o opcional? Hoje, porém, certos progressos na biologia celular nos acenam com perspectiva de atuar sobre os processos bioquímicos de envelhecimento, ampliando a duração da vida humana, talvez indefinidamente. A morte não parece mais ser uma necessidade pertinente a natureza do vivente, mas uma falha orgânica evitável; suscetível, pelo menos, de ser em principio tratável e adiável por longo tempo (cf. JONAS, 2006, p. 58).
Ao longo tempo do caminho da crescente capacidade de manipulação social em detrimento da autônima individual, em algum lugar se deverá colocar a questão do valor, do valer a pena de todo o empreendimento humano. Sua resposta deve buscar a imagem do homem, da qual nos sentimos devedores. Devemos repensá-la a luz de hoje podemos fazer com ela ou fazemos a ela e que nunca podemos fazer anteriormente.
A mesma exigência se impõe em grau ainda mais alto com respeito a o ultimo objeto de uma tecnologia aplicada ao homem – o controle dos homens genéticos futuros. Aqui Jonas se reserva a apontar esse sonho ambicioso do homo faber, condensado na frase de que homem quer tomar em suas mãos a sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em sua integridade, mas de melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio projeto. Mas, quem serão os criadores de imagens, conforme tais modelos com base em qual saber? Aqui cabe também a pergunta sobre o direito moral de fazer experimentos com seres humanos futuros. Essas perguntas e outras semelhantes, que exigem uma resposta antes que nos deixemos levar a uma viagem ao desconhecido, mostram de forma contundente até que ponto o nosso poder de agir nos remete para além dos conceitos de toda ética anterior (cf. JONAS, 2006, p. 61).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A natureza nova do nosso agir exige um nova ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional a amplitude do nosso poder, ela também exige, em nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade. Uma humildade não como a do passado, em decorrência da pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza do nosso poder, pois a um excesso do nosso poder de fazer sobre o nosso poder de prever e sobre o nosso poder de conceber valor e julgar. Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das conseqüências últimas é motivo para ma contenção responsável – a melhor alternativa à falta da própria sabedoria (cf. JONAS, 2006, p. 63-64).
Agora tememos na nudez de um niilismo no qual o maior dos poderes se une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao menor dos saberes sobre para que utilizar tal capacidade. Busca-se uma ética que possa controlar os poderes extremos que hoje possuímos e que nos vemos obrigados a seguir conquistando e exercendo. Diante de ameaças iminentes, cujos efeitos ainda podem nos atingir, frequentemente o medo constitui o melhor substituto para a verdadeira virtude e a sabedoria. Porém, até aqui apresentamos a pertinência das pressuposições: o nosso agir coletivo-cumulativo-tecnológico é de um tipo novo, tanto no que se refere aos objetos quanto sua magnitude. Por seus efeitos, independentemente diretas, ele deixou de ser eticamente neutro. Com isso se inicia a tarefa propriamente dita de se buscar uma resposta (cf. JONAS, 2006, p. 65-66).
Concluo com as palavras de Martin Heidegger (que fora professor de Hans Jonas) em sua magna obra Ser e Tempo: Se a temporalidade constitui o sentido ontológico originário da pre-sença onde esta em jogo o seu próprio ser, então a cura deve precisar de tempo. A temporalidade da pre-sença constrói a “contagem do tempo” (cf. HEIDEGGER, 2002, p. 9). O que nos leva a compreender, é que uma ética da responsabilidade, antes necessita de um imperativo que considere a dimensão do cuidado, isto é, da cura que esta no tempo e hoje mais do que outrora passa da era antropocêntrica tecnológica para o imperativo da era biocêntrica (a vida como centro de nossas atenções). O dasen (ser aí) enquanto pre-sença no mundo e do mundo deve despertar a co-partcipação e co-responsabilidade do homem com a geração da vida na Terra.
O imperativo contemporâneo ou pós-moderno (como intitula alguns pensadores) clama por ética franciscana. Que se inspire nos gestos de Francisco de Assis (século XII), convidando-nos a assumir uma relação de irmandade e de uma profunda amorosidade com todos os seres e todas as coisas do universo, amorosidade esta que conduza a uma verdadeira conscientização e comprometimento do homem, transcendendo sua racionalidade.
Santo Agostinho (século V) disse: “(...) não queiras ir para fora. Entra em ti mesmo, pois é no interior do homem que habita a verdade. E se achares que tua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo. Mas, ao te transcender, lembra de transcender tua própria razão” [4]. Assim, intuímos segundo as palavras de Agostinho, que o imperativo que hoje vigora consiste em inserir no homem a consciência de que ele é um ser que se integra como parte e parcela do todo, ou seja, o ser humano como um nó de relações que dialoga com todo o universo. Isto é, uma célula de uma grande rede de comunicações e de informações que é o mundo e que hoje clama por seres humanos mais humanos ou como dizia Nietzsche” demasiadamente humanos”. Necessitamos de seres mais racionais (não necessariamente kantianos), porém uma racionalidade que transcende a própria razão e desperte o que há de mais genuíno no ser humano, isto é, sua capacidade de abertura e ampliação de seus próprios horizontes, que é o que torna o homem um ser mais ético, cuidadoso, caridoso, compassivo e responsável consigo e com o próximo, desde o mais próximo ao mais distante[5].  









REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfred Bosi. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BOBBIO, Noberto.A Era dos Direitos, Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992.
BOBBIO, Noberto.O tempo da memória:  DE senectute e outros escritos autobiográficos, Tradução de Daniela Versiani, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1997.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback; Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2002.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. De Marijane Lisboa e Luiz Barros. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
KING, Hans. Projeto de ética mundial; Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana 3. Ed São Paulo: Paulinas, 1999.



   


 

    


      



[1] Graduando em Filosofia pela PUCPR.
[2] Para Kant a liberdade seria um direito absoluto, afirmação que se difere da posição de Bobbio.
[3] Kant chegou a dizer que em matéria da moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes simples (Fundamentação da Metafísica dos Costumes); Aristóteles diz que no agir moral esta implicado em conceito universal do bem, mas sua transposição para a prática exige um conhecimento do aqui e agora, e este é inteiramente não teórico. 
[4] AGOSTINHO. De vera religione, XXIX, 72.
[5] Parágrafo inspirado nas palavras do frei Clodovis Boff em sua conferencia sobre Busca e sentido da vida proferida no dia 12 de novembro de 2009, em virtude do evento Cultura e Fé promovida pela Pastoral Comunitária da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 

Nazismo e Fascismo: ideologias e regimes






Charles Fernando Gomes







1. INTRODUÇÃO






No capítulo nono da obra Ideologias e Políticas Contemporâneas, Roy C. Macridis debruça-se sobre os poderosos movimentos totalitários, porém mais especificamente no movimento nazista que ocorreu na Alemanha de Hitler e no movimento fascista que ocorreu na Itália de Mussolini. Depois da primeira Guerra Mundial, os antecedentes intelectuais do pensamento antiliberal e antidemocrático e as circunstancias históricas particulares da Europa afetaram todas as nações. De fato, o nazismo e o fascismo (apesar da primeira ter obtido maior aceitação por sua nação) retratam o poder gigantesco que as idéias podem exercer, o grau a que podem ser elevados os cidadãos, não só a submissão, mas também à ação frenética que gerou e sua aceitação quase cega pelos patriotas.




2. O Nazismo Alemão.




A Alemanha enlouqueceu. A afirmação fora feita por um historiador, todavia a Alemanha era uma das nações mais adiantadas e civilizadas do mundo, contrastando o episódio vivido com a envergadura intelectual que era produzida pelos intelectuais alemães
O totalitarismo da direita alemã tornou-se uma realidade quando o líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, Adolf Hitler, subiu ao poder, em janeiro de 1933. Hitler pôs-se imediatamente a organizar o novo sistema, o Terceiro Reich, realizando muitas das promessas que havia feito. Destacavam-se a abolição das instituições democráticas e a preparação de uma guerra expansionista para estabelecer a dominação mundial alemã. Os princípios do movimento hitleriano vêm dos resultados da Primeira Guerra Mundial e também da abundante literatura antidemocrática alemã e o passado de extremismo político de direita. O nazismo era tanto nacionalista como racista e tinha acentuado apelo populista, comunitário e igualitário. Muitos nacionalistas ligavam o sistema político que defendiam às primeiras tribos germânicas, onde a democracia direta era aplicada entre guerreiros ligados por laços de sangue, sacrifício e esforços comuns (cf. MACRIDIS, p.214).
Hitler, ao que constatam os dados históricos, aliava este ideal germânico (democracia direta aplicada) com seu discurso profundamente eloqüente. Suas palavras quando dirigidas a grande massa possuíam um poder hipnótico e tal magnetismo alcançava o coração dos alemães, sedentos de um redentor que purificasse e salvaguardasse a Alemanha. A camada mais desfavorecida, isto é, colonos, agricultores, a classe média baixa e até a elite vislumbravam em sua imagem, que também era exposta pelos meios de comunicação e propagandas, o Pai que a nação alemã necessitava para avançar e retomar seus áureos tempos de bonança, comunitarismo e prosperidade.
O nazismo como ideologia e movimento político começou com um gesto negativo, embora houvesse também a formulação de certo número de temas e de proposições positivas como base de construção da nova sociedade. Alguns desses pontos se relacionavam à situação imediata; outros a problemas econômicos, políticos e sociais, criados pelo liberalismo e pala ameaça comunista. Porém, toda negação feita pelos nazistas (o que eles planejavam eliminar) pedia naturalmente uma afirmação (o que planejavam fazer em substituição). Como relaciona o autor do texto: O anti semitismo sugere racismo e pureza de raça; o anti individualismo, uma ética comunitária que transcende o indivíduo; o anti liberalismo, uma nova organização política; o posicionamento anti Versalhes, a instauração de alguma nova espécie de ordem internacional. É a combinação dos raciocínios detrás das negações que resultou numa síntese nova e dinâmica da vida social e nacional (cf. MACRIDIS, p.220-222).
A cultura política alemã estava também repleta do raciocínio e da influencia do pensamento filosófico provindos do romantismo, das letras, da arte e da política vigente que herdara do idealismo. Idéias gerais e abstratas desenvolvidas para resolução de problemas de questões transcendentais, políticas, de justiça e conhecimento, através da imaginação mais do que pelo exame empírico e experimental. A filosofia e a teologia, o estudo de Deus e de questões fundamentais, não o estudo da sociedade e das relações inter sociais eram características do intelectual alemão. Era um estado de espírito atraído pelo que parecia absoluto e definitivo e não pelo que fosse pragmático e pudesse resolver problemas. O nacionalismo, como um fim em si mesmo, permaneceu uma poderosa força e quando a nação alemã e o Estado foram considerados como o veículo final para a realização da justiça e do bem na Terra não poderia haver limites ao escopo e às aspirações dos nacionalistas. Talvez devido ao fato da unificação da Alemanha em um estado nacional ter vindo tão tarde, o nacionalismo tomou a forma mais integrativa e absolutista, reunindo todos os alemães em um estado, reafirmando sua superioridade e a superioridade de tudo que representava sobre todos os outros (cf. MACRIDIS, p.227).
Assim, como ideologia que agradava, o nazismo regatava o sonho mais íntimo que todo cidadão alemão projetava para sua nação. Um ideal político, econômico, religioso, cultural e substancialmente racial. Alguns traços da cultura do povo alemão como um partido militante mobilizando o povo em suas hostes; com um líder político magnético tentando fazer ressurgir os demônios nacionais das superioridades racial e nacional germânicas, explorando todas as fraquezas de um governo parlamentar aferrolhado, o estado totalitário instaurou- se na Alemanha com um apoio muito maior do que qualquer outra parte. Foram bem aceitos pelos grupos e classes sociais, inclusive parte apreciável dos trabalhadores, e pelos importantes grupos de elite e inclusive as Igrejas e os militares. O nazismo era um produto feito em casa. Era made in Germany (cf. MACRIDIS, p.230).




3. O Fascismo Italiano


O partido fascista surgiu na Itália, mais ou menos na mesma época em que o nazismo na Alemanha. Porém, o estado fascista apareceu muito antes. Os fascistas tomaram o poder em 28 de outubro de 1922, uma época antes de Hitler. Em 1923, quando Mussolini estava lançando as bases da nova ordem italiana, Hitler ainda estava começando a sua carreira política e encarcerado em virtude do abortado putsch Munique. O partido fascista fora fundado em 1919. Era então um dos muitos grupos extremistas nacionalistas. Apoiava os movimentos revolucionários e as greves dos trabalhadores, reclamava a desapropriação da terra e a nacionalização de indústrias, como as de mineração e de transporte. Mussolini procurou acumular temas da direita nacionalista e reivindicações da extrema esquerda esperando ter apoio tanto da esquerda como da direita. Seu apelo inicial foi tão semelhante ao de Hitler que facilmente poderia ter chamado seu partido de Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores da Itália (cf. MACRIDIS, p.231-233).
O fascismo semelhante ao nazismo seria a resposta à liberal democracia, eliminando a competição, o individualismo, a procura de lucro e de ganhos materiais, divisões, fragmentações e particularismos. Seria estabelecido um novo regime para criar unidade e cooperação, disciplina e esforços conjuntos, para a realização do objetivo coletivo do estado. Creia; Obedeça; Trabalhe; Lute era um dos lemas do fascismo. “Tudo dentro do Estado; tudo para o Estado; nada fora do Estado”, era outro lema. O argumento em favor do caráter abrangente e da primazia do Estado é para os fascistas a significação da subordinação, ao Estado de todas as atividades e organizações sociais, de todos os interesses individuais, de todas as manifestações culturais (inclusive a religião), e de todos os direitos materiais, políticos e morais (cf. MACRIDIS, p.234).
O partido fascista tinha o monopólio da representação, o virtual monopólio dos cargos e o monopólio da mobilização e do recrutamento. No entanto, não formou um exercito privado como os nazistas fizeram com os SS e a SA. Durante o período fascista, o exercito, e sua oficialidade, manteve sua autonomia. A milícia fascista permaneceu relativamente sem importância. Os combatentes fascistas possuíam dez mandamentos, que podemos resumir em dois votos de total obediência e subordinação: Deus e Pátria (ambos se encontram no ideal fascista). Os fascistas alegavam sua primazia também na educação. A Igreja Católica com tamanha resistência questionara a substituição do ensinamento de valores espirituais por uma doutrinação na moralidade e lealdade política fascista para os jovens e fiéis. O papa recusava-se a aceitar que o estado monopolizasse a educação dos jovens antes da formação. Era particularmente ofensivo para a Igreja um juramento exigido pelos fascistas para obedecer ao estado “sem discussão”. Se tal juramento fosse exigido, o papa instruía os católicos a fazê-lo com “reservas mentais” (cf. MACRIDIS, p.240). O que podemos compreender é uma posição reservada e distante da Igreja em relação ao estado fascista, mesmo que alguns fiéis (contrariadamente a Igreja) fossem adeptos a doutrina política de Mussolini (cf. MACRIDIS, p.241).
Em relação ao Estado Corporativo suas funções eram principalmente conciliar os dissídios entre vários ramos da atividade, a fim de coordená-la melhor e regular o emprego e o treinamento técnico de seus membros. Esperava-se também que disciplinassem a produção e que, com a aprovação do estado, fixassem os preços de bens, serviços e salários e fizessem a supervisão das condições de trabalho em várias firmas e serviços. O estado fascista tinha sempre a primeira e a última palavra e os velhos sindicatos haviam sido eliminados garantindo o domínio fascista. Deste modo o mecanismo corporativo tornou-se instrumento de controle e vigilância sobre os trabalhadores, forçando-os a clandestinidade e nada fazia para aliviar os conflitos da classe (cf. MACRIDIS, p. 242-243).
Contudo, podemos concluir que havia uma grande distância entre ideologia fascista e a prática, assim como também entre o movimento fascista e o sistema de governo que construíram. A ideologia original era anti burguesa, antiliberal, contra as instituições, e batalhava para extensivas reformas estruturais da sociedade em benefício dos trabalhadores e dos pobres e contra os grupos de elite privilegiados e suas instituições, proprietários de terra, industriais, a igreja e a monarquia. Houve o desvio em favor os poderosos, das elites industriais e dos funcionários públicos, da monarquia e da burguesia, pois, todos deram seu apoio em dinheiro. O fascismo representava uma forma de capitalismo estatal em que todos os grupos mercantis, industriais e proprietários de terra cooperavam sob a supervisão do estado. Mas, eles foram incapazes de dominar toda a sociedade como os nazistas inquestionavelmente fizeram. A apregoada unidade da nação debaixo do estado fascista desmoronou durante a Segunda Guerra Mundial. As antigas forças políticas e os particularismos se reafirmaram espontaneamente logo que a guerra passou (MACRIDIS, p. 243-244).




4. Considerações Finais




Todas as interpretações dadas aos movimentos totalitários nos dão explicações parciais. Em alguns casos, pode ser que níveis de modernização permitam colocação. Em outros casos o indivíduo pode ter procurado abrigo na unidade e no esforço comunitário e em outros casos foram procuradas por grupos mercantis e financeiros para defender o sistema econômico de onde obtiveram seus lucros.
Contudo, nenhuma interpretação nos basta, elas apenas nos ajudam a identificar as condições sob as quais os sistemas políticos se tornam vulneráveis ao assalto totalitário. Movimentos que não estão completamente mortos, mas que ressurgem em micro poderes e acenam pequenas bandeiras em cenários de crise internacional, pois, apesar das desastrosas conseqüências de movimentos ideológicos e totalitarismos no passado, parece que ser revolucionário ou seguir ditadores não saiu completamente de moda.






5. Referencias


Macridis, Roy C. Ideologias políticas contemporâneas: movimentos e regimes. Tradução de Luís Tupy Caldas de Moura e Maria Inês Caldas de Moura. Brasília: Universidade de Brasília, 1982. 318 p. il. (Pensamento político, 58).


Teorias da Consciência






No século XX, mas especificamente em 1980, a problema que girava em torno da distinção entre mente e consciência não parecia ser mais a centralidade da preocupação dos filósofos da mente. Havia grande entusiasmo, por parte destes filósofos, em virtude das atuais perspectivas abertas pela inteligência artificial e a possibilidade da simulação mecânica das atividades mentais humanas através de mentes artificiais. A temática acerca da consciência e seus estágios não faziam mais parte da agenda dos funcionalistas. Para eles processamento de informação e experiência consciente era dissociável.


Porém, seria possível simular a cognição humana sem simular ao mesmo tempo seu aspecto consciente? Não seria essa uma diferença essencial entre mentes artificiais e humanas? Estas foram às questões que começaram a ser formuladas no final da década de 1980. Tudo se passava como se a simulação da atividade mental humana fosse uma tarefa perfeitamente exeqüível, dependendo apenas dos avanços tecnológicos. Restaria apenas saber o que tornaria um estado mental algo consciente, e, para isso, seria necessário responder algumas questões que não deixavam de causar perplexidade: O que é consciência? Que tipo de papel desempenha essa na explicação da cognição humana? Existe cognição sem consciência? Que tipo de papel desempenha essa na explicação da cognição humana? Existe cognição sem consciência? Terá a consciência um papel causal na produção da cognição e do comportamento? Podemos tratar a questão da consciência como um problema científico, isto é, como um problema empírico (cf. TEIXERA, 2006, p. 153)?


A partir dessas questões, uma profusão de teorias acerca da natureza da consciência começou a proliferar na filosofia da mente. De teoria da mente fora renomeada por teoria da consciência, para retornar rapidamente para uma equiparação entre consciência e mente, num movimento quase imperceptível. Esse movimento se inicia no final dos anos de 1980, quando se enfatizou a necessidade de elaborar uma teoria da consciência por acreditar-se que uma teoria da mente não seria suficiente para explicar a natureza da experiência consciente. Os filósofos da mente foram acusados de ficar girando em círculos, num exercício especulativo, árido e inútil, aonde nunca se chega a qualquer tipo de consenso que servisse de ponto de partida para a elaboração de algum tipo de teoria (cf. TEIXERA, 2006, p. 154).


Os teóricos da consciência são: os naturalistas, estes acreditam poder explicar na natureza da consciência através de teorias computacionais; os não- naturalistas, para estes qualia (qualidade subjetiva) e experiências conscientes são intratáveis do ponto de vista de qualquer tipo de teoria neurocientífica; novos misterianos, estes descartam a hipótese naturalista, mas sustentam que desvendar a natureza da consciência constitui um problema cuja complexidade ultrapassa a capacidade cognitiva humana. Os naturalistas rejeitam uma análise conceitual da consciência, pois, segundo eles temos que elaborar teorias específicas de processos mentais, isto é, teorias acerca da natureza da atenção, da memória, dos processos cerebrais subjacentes à produção do sono e da vigília, assim quando desvendarmos esses correlatos neurais estaria de posse de uma teoria da consciência. Porém, o que de mais importante resultou dessas manobras teóricas foi à dissociação das fronteiras entre filosofia da mente e neurociência.


Essa quebra de fronteiras entre filosofia da mente e neurociência resultou diversas hipóteses acerca dos correlatos neurais da consciência. De todas essas hipóteses, as que se tornaram mais populares foram as de Edelman e as de Crick e Koch. Crick, ganhador do prêmio Nobel, popularizou-se no seu livro The Astonishing Hypothesis (A hipótese assombrosa), publicada em 1994. Nesse livro Crick chamou de hipótese assombrosa a possibilidade de explicar a natureza de nossos pensamentos, alegrias, tristezas e outras emoções como resultando da atividade de alguns grupos de neurônios de nosso cérebro. Crick supôs que a chave para desvendar o mistério da consciência estaria no estudo dos mecanismos mecânicos neurais subjacentes à organização da percepção visual. A hipótese que ele desenvolveu baseou-se no fato de que a consciência visual esta correlacionada com uma oscilação, em 40 Hz, das camadas cinco e seis do córtex visual primário. Ou seja, quando o córtex visual reage à estimulação, alguns grupos e neurônios disparam de forma sincronizada (cf. TEIXERA, 2006, p. 155-156).


A teoria de Edelman (1987, 1989, 1992) não se popularizou tanto como a de Crick e Koch, embora tenha atraído a atenção da neurociência e cientistas cognitivos. Para a formulação de sua teoria, o darwinismo neural, Edelman partiu de cinco idéias básicas acerca do funcionamento cerebral: a primeira se baseia na impossibilidade do genoma humano especificar inteiramente a estrutura do cérebro; a segunda idéia diz que os cérebros dos indivíduos apresentam diferenças em termos de estrutura e conectividade; a terceira idéia diz que da mesma maneira que pressões ambientais selecionam membros mais aptos numa espécie, as informações que entram no cérebro selecionam grupos de neurônios reforçando a conexão entre eles; na quarta idéia, grupos de neurônios podem desempenhar múltiplos papeis. Detectores de vermelho são ativados quando as coisas vermelhas estão na minha frente. Contudo, eles podem também ser ativados para reconhecer rosa ou púrpura; em quinto e último lugar, a perda de neurônios não implica, necessariamente, na perda de capacidade funcional do cérebro; salvo quando essa perda é massiva como no caso, por exemplo, da doença de Alzheimer (cf. TEIXERA, 2006, p. 156).          


   As teorias de Crick e Koch e a de Edelman são consideradas marcos importante nas tentativas de elaboração de uma abordagem naturalista da consciência. Contudo, nelas não encontramos uma explicação da natureza da experiência consciente, ou seja, elas não explicam em última análise, torna um estado mental algo consciente. Crick e Koch identificavam a experiência consciente como à organização da percepção buscando uma explicação de sua unidade em mecanismos neurais subjacentes. No caso de Edelman, encontramos uma identificação implícita entre consciência e atenção. Ambas são teorias neurológicas da mente e não da consciência. Não poderíamos esperar de uma abordagem naturalista uma explicação do que é consciência, pois, essa não é a proposta de Edelman e nem de Crick e Koch. Mas poderíamos esperar uma explicação de como e porque a consciência afeta a cognição, ou seja, que diferença faz ter experiências conscientes (cf. TEIXERA, 2006, p. 157).   


Os filósofos ressaltam dois grandes desafios por uma teoria da consciência: primeiro é achar que uma teoria da mente é automaticamente da consciência (como querem os naturalistas influenciados pelos funcionalistas); a segunda é escapar da especulação filosófica estéril. Exemplificamos estes desafios com o seguinte caso: Num jogo de xadrez em que um dos competidores seja uma máquina (Deep Blue), não reconhecemos nada parecido com a cognição humana, apesar de ele ter sido construído por uma equipe de engenheiros e programadores e, do fato de seu programa registrar milhares de jogadas e soluções para o problema do xadrez e executadas por seres humanos nas últimas décadas. A inconsciência de Deep Blue torna sua psicologia totalmente vazia.


 Diante desse exemplo, dirão os funcionalistas: que a inteligência e a consciência podem ser dissociadas, devido à consciência ser apenas efeito colateral. Os naturalistas dirão: que a consciência é apenas um efeito colateral. Flanagam afirma: que a máquina não tem experiências conscientes (fato desconsiderado pelos naturalistas e funcionalistas). Ao fim do jogo o homem se felicita pela vitória ou se entristece pela derrota, mas a máquina é neutra a esboçar sentimentos (modelo contra intuitivo da cognição humana). A consciência é o que difere nossa vida mental da máquina e dos insetos, afirma Flanagam, devido à capacidade de sentir prazer, dor, alegria e sofrimento ser essencialmente patrimônio do ser humano e de seu sistema evolutivo e cultural. Porém, para explicar tal afirmação necessitaríamos de uma teoria da consciência.


O caráter da consciência é o que nos permite ver o filme do mundo em technicolor. Mic Ginn (1989) e Sagan alertam para o risco envolvido nas tentativas de formulação de teorias da consciência. Reconhecer a existência, a ontologia própria da experiência consciente pode levar-nos ao dilema de não podermos situá-la em nenhum quadro conceitual compatível com uma visão científica do mundo. Por outro lado, rejeitar a existência da consciência pode levar-nos a um empobrecimento teórico inaceitável. Haverá alguma estratégia teórica e metodológica que nos livre desse dilema? A alternativa é uma nova abordagem à cognição que se desenvolveu na década de 1990, chamada neurociência cognitiva. Consolidou-se a partir dos avanços nas técnicas de neuroimagem, permitindo uma abordagem empírica da natureza da experiência consciente.


Uma primeira incursão fora desbravada por Dennett, Calvin e Baars: para Dennett, o problema da consciência resulta dos pseudo-problemas ou de uma mitologia filosófica e um dos principais mitos são: no teatro cartesiano haveria um intérprete que existiria no consciente e que por assistir as cenas do teatro daria origem a consciência reflexiva ou autoconsciência, o significador também como interprete que ordenaria as cenas que se passam neste teatro, tornando-as consistentes e coerentes, e múltiplas camadas que nosso cérebro como uma máquina híbrida ou de arquitetura computacional mista, isto é, várias máquinas acopladas a uma máquina serial (virtual). É um erro pensar que nosso fluxo da consciência seja unívoco, pois, ele é errático e fragmentário. Dennett[1] nos diz que a consciência seria um processo que se assemelha à fama, isto é, cada pensamento teria seu momento de holofotes (fama) e cada fragmento da narrativa entraria na máquina serial por um curtíssimo intervalo de tempo.             


   Para Calvin, o cérebro funcionaria como uma máquina darwiniana. A sinfonia cerebral, isto é, a atividade mental como organizadora e ordenadora (maestro) do comportamento dos organismos no meio ambiente. Assim surgiriam vários cenários na mente e esta produziria um novo cenário ganhador que resultaria de um processo semelhante ao de uma mutação genética de espécies (máquina darwinista). Para Baars, o espaço global de trabalho, o cérebro funcionaria como uma central de comutação de informações entre os vários processos inconscientes executados por módulos ou circuitos especializados que estão no cérebro. A realidade confirmada por evidências neurobiológicas (áreas sendo ativadas no cérebro “neuroimagem”) significando que processos conscientes são detectáveis e ocorrem em lugares específicos do cérebro.


Os três modelos chamam a atenção para aspectos importantes do funcionamento mental. A teoria das múltiplas camadas de Dennett, a recombinação mutante dos cenários possíveis de Calvin e o global workspace de Baars revivem um problema que ainda hoje inquieta os neurocientistas: como é possível que um dispositivo com arquitetura paralela, como parece ser o cérebro, possa lhe permitir passar do paralelo para o serial? Quais os mecanismos cerebrais responsáveis pela integração da informação? A busca de uma solução para esse problema já ocupou neurocientistas e psicólogos famosos como, por exemplo, K. Lashley, que, em 1951, publicou um artigo clássico sobre o tema, The Serial Order of Behavior (A ordem serial do comportamento). Mas nenhuma solução definitiva parece ter sido ainda encontrada. A construção de modelos (ou simulações computacionais) que operem a passagem do paralelo para o serial, integrando informações adequadamente e na mesma velocidade que o cérebro o faz apresentar-se como um desafio preliminar na busca da solução para esse problema. Um desafio que, uma vez superado, precisará ainda ser confirmado no que diz respeito à sua plausibilidade neurobiológica (cf. TEIXERA, 2006, p. 164).   


A ciência da mente começou a passar por significativas transformações quando as atenções saíram do modelo computacional da mente para o cérebro como substrato biológico da cognição e da consciência. Essas transformações começaram a partir dos anos de 1990. Até essa época, a idéia que predominava era a de que a mente seria o software do cérebro (ou que a relação entre psicologia e neurociência seria o mesmo que a relação entre software e hardware, respectivamente). Onde e como esse software seria implementado constituía apenas um detalhe técnico paras os funcionalistas (cf. TEIXERA, 2006, p. 165).   


A grande responsável pela volta ao estudo do cérebro como substrato da consciência e da cognição foi à neurociência cognitiva. Esta nova disciplina propunha uma reconsideração das bases cerebrais da cognição e da consciência definindo-se como resultado de uma colaboração intensa entre neurociência e ciência cognitiva[2]. O fato é que hoje os contornos da neurociência cognitiva são bem nítidos. Ela é, conforme Teixeira, uma estratégia metodológica. Vários foram os fatores que contribuíram para a sua formação. Tais fatores são, por exemplo, uma aproximação entre neuropsicologia clínica e a psicologia cognitiva no estudo dos efeitos das lesões cerebrais; a observação sistemática da correlação entre comportamento explícitos de animais e sua atividade neural. Ajunte-se a isso o fato de que a neurociência cognitiva passou a se servir das novas técnicas de neuroimagem que permitiram, no caso dos seres humanos, o estudo das atividades cerebrais in vivo. Teixeira afirma que a neuroimagem é um dos pilares da ciência cognitiva. Segundo ele, desde a descoberta do raio-X a e do encefalograma (EEG) o aparecimento de novas técnicas, como o PET (Positron Emission Tomography) [3] e o MRI[4] (Magnetic Resonance Imaging) abriram novas portas para que se possam estudar as bases biológicas e cerebrais do comportamento dos cérebros das pessoas vivas, possibilitando uma progressiva integração entre psicologia experimental e neurociência.


Os resultados que essas novas técnicas têm dado resultados surpreendentes e inauguram uma nova era na neurociência. Isso porque além de modificar a nossa concepção do funcionamento cerebral, as técnicas de neuroimagem abriram novas perspectivas para o estudo da natureza da consciência. O estudo da atividade cerebral de pacientes com anomalias funcionais como amnésia profunda ou acalculia (incapacidade de efetuar operações aritméticas), por exemplo, ganhou nova dimensão. Reconhecia-se que explicar a natureza desses distúrbios pressupunha explicar em que sentido eles alteravam os aspectos da vida mental consciente de seus portadores. Assim, firmamos que as técnicas de neuroimagem vêm adquirindo importância crescente na medida em que através delas se começa a estabelecer uma conexão entre alterações de consciência e alterações no cérebro (cf. TEIXERA, 2006, p. 168).   


A neuroimagem, conforme Teixeira põe em relevo, é uma ferramenta de que dispomos para o estudo empírico da consciência. Na verdade, as técnicas de neuroimagens, acabam por integrar várias outras metodologias no estudo empírico da consciência. Segundo Teixeira, essa metodologia integradora, sobretudo quando aplicadas a sujeitos humanos com anomalias funcionais, tem como ponto de partida o reconhecimento da dimensão própria e da experiência consciente e seu papel na cognição. A neurociência cognitiva parte do reconhecimento dessa dimensão para tentar encontrar suas bases neurais e suas relações com o comportamento. Nesse sentido, seu pressuposto metodológico caminha em direção inversa ao reducionismo ou às teorias da identidade, sem, entretanto, romper com uma proposta materialista. Estratégias identitáristas ou reducionistas tentam explicar a cônscia negando a existência e a especificidade desse tipo de fenômeno. Para a neurociência cognitiva explicar não é, necessariamente, reduzir. As teorias da mente não poderiam cumprir o papel de serem teorias da consciência, embora essas últimas envolvam necessariamente a investigação do sujeito mental e suas bases neurofisiológicas.


Com a ênfase que a neurociência cognitiva deu ao estudo cérebro ela acabou pondo em xeque o funcionalismo. Isso se deve ao fato de que, nas últimas décadas, segundo Teixeira, a análise da noção de função em filosofia da mente tem se mantido sistematicamente atrelada à doutrina funcionalista professada pelos partidários da inteligência artificial. Nesse contexto a noção de função esteve dissociada de qualquer tipo específico de realidade biológica. Assim, forma e função são visto como sendo totalmente independentes. Daí o autor exemplifica afirmando que não é o material de que é feito um tabuleiro de xadrez, nem tampouco seu tamanho ou formato que definem esse tipo de jogo, mas a função que lhes é atribuída. A madeira e o marfim seriam alternativas físicas válidas, a partir das quais se podem construir peças de um jogo de xadrez. Mas, problematiza Teixeira, não seria um anacronismo utilizar esse mesmo raciocínio no caso do funcionamento mental? Até que ponto as características específicas do material do qual é composto o cérebro determina as funções que esse pode desempenhar? Os progressos nas tentativas de mapeamento do cérebro têm levado a uma revisão crescente do pressuposto da independência das funções cerebrais às arquiteturas e materiais específicos que a instanciam (cf. TEIXERA, 2006, p. 170).   


Os pioneiros do funcionalismo, como Putnam e Fodor, por exemplo, sustentam que um mesmo estado mental pode ser reproduzido por diferentes estados cerebrais e que, inversamente, um mesmo estado neurológico pode produzir vários estados mentais. O que eles não especificam, contudo, é o que devemos compreender por um mesmo estado mental ou por um mesmo estado neurológico. Teixeira exemplifica nos convidando para considerar o estado “estar com fome”. Putnam sustentaria que tanto um ser humano quanto um peixe estariam num mesmo estado neurológico, pois seus sistemas nervosos apresentam grandes diferenças. Porém, o problema que permanece é o seguinte: ambos os estados mentais, do ser humano e do peixe, ao ter fome, seriam funcionalmente equivalentes? A resposta a esse problema é a seguinte. Se se considera “estar com fome” à produção e envio de algum sinal para o cérebro do organismo que gere, por sua vez, o desejo de comida, então, a fome do ser humano e a fome do peixe podem ser vistas como funcionalmente equivalentes.  Entretanto, a própria noção de equivalência funcional pode ser questionada. Não dependeria ela de um tipo específico de perspectiva adotada. Dessa forma, por exemplo, uma xícara é funcionalmente equivalente a um copo se os considerarmos a partir da perspectiva de que sua função primeira é “recipiente para beber água”. Se atribuirmos à xícara ou ao copo a função de ser “recipiente para conter água”, eles se tornam funcionalmente equivalentes a um regador que também tem a função de “ser um recipiente para conter água”. Entretanto, regar um canteiro de flores com um copo ou com uma xícara e não com um regador é algo inadequado. Dessa forma, a equivalência funcional requer uma contextualização que define a atribuição de função (cf. TEIXERA, 2006, p. 170).   


Assim, considerar a fome do peixe e a fome do ser humano funcionalmente equivalente pressupõe uma contextualização prévia que define a atribuição de função. A fome de ambos produz, em cada um, comportamentos distintos. Além do mais os estímulos que podem causar a fome num ser humano são distintos daqueles podem causar fome num peixe. As opções de alimento para um ser humano são também distintas daquelas que podem satisfazer um peixe. Nesse sentido, a fome do ser humano e a fome do peixe só podem ser consideradas funcionalmente equivalentes se consideradas a partir de um contexto específico. Esse contexto abstrai as suas peculiaridades para torná-las funcionalmente equivalentes. Esse tipo de abstração teria sido até agora o grande pressuposto da abordagem funcionalista. Esse pressuposto, contudo, por levar a ignorar as peculiaridades resultantes dos diferentes tipos de implementação física ou neurológica, estipula, apressadamente, equivalências funcionais entre estados mentais distintos. Estipula também que estes estados mentais podem ser tratados independentemente de quaisquer peculiaridades da base física na qual eles podem ser instanciados. Essa, portanto, teria sido a manobra teórica feita pelos funcionalistas. Com ela eles propuseram o modelo computacional de mente e assim se passou a ignorar peculiaridades neurológicas ou peculiaridades de forma, que estariam envolvidas na explicação de funções mentais. Com isso, ajunta Teixeira, ter-se-ia esquecido, por exemplo, que no cérebro há uma variedade de neurotransmissores que produzem efeitos variados, diferenças entre células que executam funções específicas e uma grande variedade de sistemas com suas especificidades. Ademais, teriam esquecido também que são as características físicas do cérebro a chave para explicar como e por que ele pode desempenhar certas funções (cf. TEIXERA, 2006, p. 171-172).    


Defensores mais radicais dos estudos do cérebro afirmam que as teorias funcionalistas não têm mais tanta validade. Para Teixeira, não resta dúvida de que modelar a cognição ou descobrir os mecanismos que produzem a consciência através de um conjunto de leis lógicas totalmente independentes do mecanismo físico que a implementa constitui uma estratégia inviável. Essa parece ter sido a lição imediata da neurociência cognitiva e do movimento em direção à redescoberta do cérebro que se iniciou na década de 1990. Teixeira continua indagando se a neurociência cognitiva poderá abandonar completamente a utilização de modelos computacionais para estudar o cérebro. Segundo ele, certamente a resposta é negativa. Porque não são os modelos computacionais que devem ser abandonados, porém a pretensão de, a partir deles, podermos construir réplicas completas de atividades cognitivas humanas (173).


De resto, Teixeira afirma que não se pode mais estudar a mente sem estudar o cérebro, pois se acredita cada vez mais que suas características seriam a chave para a compreensão da natureza da cognição e da consciência. Assim sendo, a neuroimagem, revelando localizações específicas ou revelando a existência de um sistema integrado, nos permite apenas inferir a existência de uma correlação ou uma correspondência entre dois tipos de séries: uma delas constituídas de eventos mentais e outra de eventos cerebrais. Ao que Teixeira chamou de paralelismo psicofísico. Daí resta o problema de saber se algum dia, a partir desses eventos psicofísicos a neuroimagem poderá explicar como eventos físicos causam eventos subjetivos. Noutros termos: o grande passo que se espera é saber como estruturas cerebrais podem gerar consciência.   



















[1] Memes são as unidades de informação fornecidas pela cultura e processadas pelo cérebro. Segundo Dennett, como uma doença contagiosa que se espalha em um processo epidêmico. O cérebro como uma máquina virtual que entrelaça episódios produzidos pelo pandemonum competitivo dos inúmeros circuitos em paralelo
[2] Segundo Teixeira, nos anos de 1990 havia uma oscilação no modo de definir a neurociência cognitiva. Esta oscilação consistia em saber se a neurociência cognitiva seria uma parte da ciência cognitiva que se ocuparia de modelos inspirados na neurociência ou se seria uma parte da neurociência com uma preocupação voltada para as bases neurológicas dos processos cognitivos (cf. p. 167).
[3] O PET baseia-se na possibilidade de “marcar” o oxigênio e a glicose de forma que possamos então “seguir o seu caminho no cérebro”. A “marca” é um átomo radioativo que emite pósitrons, ou seja, partículas semelhantes aos elétrons com a diferença de que, ao contrário desses últimos, pósitrons tem uma carga positiva. Injeta-se na veia da pessoa, juntamente com água ou com glucose, átomos radioativos de oxigênio. A marca radioativa segue, então, através da corrente radioativa até chegar no cérebro. Os pósitrons se chocam com os elétrons que estão nas moléculas que se encontram dentro do cérebro até que as cargas positivas e negativas se anulem mutuamente. Nesse processo acontece uma emissão de raios gamas que atravessam o crânio do indivíduo podendo, assim, ser detectados por sensores que, por sua vez, podem produzir uma imagem do cérebro em funcionamento, pois a glucose e o oxigênio se acumulam naquelas áreas do tecido cerebral onde a atividade neural é mais intensa. 
[4] O MRI não necessita de injeções para produzir um contraste. Sua estratégia consiste em medir as mudanças na concentração de oxigênio no sangue que irriga o cérebro. O oxigênio é transmitido pela hemoglobina e o MRI se baseia no fato de que a quantidade de oxigênio presente numa área afeta as propriedades magnéticas da hemoglobina. Essas propriedades magnéticas podem ser monitoradas na presença de um campo magnético onde os núcleos dos átomos se alinham como se fossem magnetos em miniatura. Quando são bombardeados e tirados para fora desse alinhamento através de ondas de rádio, esses átomos emitem sinais de radio. Esses sinais de radio expressam a quantidade de oxigênio transportado pela hemoglobina, o que nos permite saber quais são as regiões do cérebro que estão ativas num determinado momento (cf. p. 168)