quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Do corpo à psique no período da Guerra Fria.




Antonio Macedo dos Santos

Charles Fernando Gomes
Gilberto Alexandre da Luz

Gisele de Goes Fontes Noguchi




1. INTRODUÇÃO




Um espetáculo literalmente bárbaro que retrata a animalidade instintiva do homem, ou como diria Freud sua pulsão de morte é a guerra. A guerra é uma obra de arte que desfigura a realidade e protagoniza a selvageria, a barbaria e a violência em seu grau extremo protagonizada pelo homem. Aquém de nossa compreensão racional, mas não obstante de nosso cotidiano. Nesta obra de arte (que é a guerra) o cenário se compõe de elementos estratégicos e maléficos incrementados pelo resultado de corpos mutilados, violentados, ensangüentados e abandonados. O pincel neste contexto é substituído por uma arma de fogo que possa ser a mais potente possível na técnica de matar o maior número de inimigos. A tinta, a qual presta sua importância, são os oceanos de sangue derramados no solo por feridos em emboscadas e ciladas, pois, na guerra não há piedade, mas vencedores e derrotados o que não isenta os primeiros (vencedores) de obterem outra forma de derrota, que é a derrota da racionalidade e da evolução da espécie, que nesta trama retrocede seu processo evolutivo.
Toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo e da psique. Na guerra, são os corpos que infligem à violência, mas também a psique juntamente com os corpos que sofrem a violência. Esta face corporal e psíquica da guerra se confunde tão intimamente com o próprio fenômeno bélico que é difícil separar a história da guerra de uma antropologia histórica das experiências corporais e psíquicas induzidas pela atividade bélica.
Para nos restringirmos ao Ocidente e a seu contato com outras áreas culturais, às quais exclusivamente nos ateremos aqui, observemos em primeiro lugar que no decurso da primeira metade do século XX poucos ocidentais puderam de todo subtrair seu corpo à experiência da guerra. Por ocasião dos dois conflitos mundiais, o combate assumiu assim o sentido de uma obrigação generalizada. Sem dúvida, as guerras revolucionárias e imperiais, ao lançar o princípio do levante em massa e a seguir, em 1798, o de uma conscrição progressivamente imitada pelos Estados europeus, tinham provocado uma primeira generalização da experiência corporal do combatente. Mas, de fato a mobilização dos homens tinha sido muito incompleta (1.600.000 mobilizados na França entre 1800 e 1815). Em seguida, após uma volta às normas pelo menos parcial, os anos 1860 e as décadas seguintes foram marcados, sob o impulso do modelo prussiano, por uma nova etapa de militarização das sociedades européias. Mas, é com e a partir dos dois conflitos mundiais que se produz verdadeiramente a transposição limiar (cf. ROUZEAU, 2008, p. 365-367).




2. DO CORPO À PSIQUE




Na quarta parte do livro História do Corpo intitulada Sofrimentos e violências, especificamente no terceiro item, Rouzeau trabalha sobre o tema do corpo à psique. O autor afirma que a guerra provocava importantes desordens psíquicas nos indivíduos e que os médicos militares do começo do século XIX já sabiam, embora dessem a essas realidades (ainda mal conhecidas) outros nomes que não os de hoje, como nostalgia ou vento da bala de canhão, por exemplo. Mas foram os conflitos modernos que ao mesmo tempo aumentaram consideravelmente o número de feridos psíquicos e forçaram os serviços de saúde das forças armadas a levarem em conta o seu caso e aplicar medidas terapêuticas (cf. ROUZEAU, 2008, p. 387).
Se a guerra russo-japonesa de 1904-1905 vê surgirem os primeiros cuidados psiquiátricos de combatentes, é de novo a guerra de 1914-1918 que vai constituir a grande ruptura: do lado francês, por exemplo, as baixas psíquicas se elevam a 14% do total das indisponibilidades. A confusão do vocabulário mostra, no entanto, as das representações: os médicos franceses falam de “comoção”, seus homólogos britânicos de Shell-schock. Isto indica que tanto estes como aqueles imaginam que os distúrbios psíquicos, que devem tratar, estão ligados a desordens neurológicas provocadas pela violência das explosões. Já os médicos alemães, através da noção de Kriegsneurosen (neuroses de guerra), posta circular desde 1907 ou ainda a de Kriegshysterie (histeria de guerra), percebem mais claramente que os distúrbios mentais dos combatentes têm como origem um sofrimento de ordem psíquica, e não neurológica. Deste modo, malgrado a hesitação dos tratamentos, é no decorrer da Grande Guerra e no quadro dos exércitos aliados que se elaboraram os primeiros princípios terapêuticos visando orientar toda a psiquiatria assim chamada “da frente” até nossos dias, a qual consistia particularmente em intervir de imediato e conservar o soldado atingido na proximidade dos locais de combate, favorecendo nele a espera da cura (ROUZEAU, 2008, p. 388).
Esses princípios são descobertos pelos norte-americanos a partir de 1942-1943 na África do Norte e no Pacífico: terão de encarar a hospitalização de mais de 900.000 “baixas psíquicas”, e mesmo certos picos espetaculares no decurso de 1944, ou mesmo 1945, como em Oknawa, onde as baixas desse tipo foram multiplicadas por dez. Devem, além disso, admitir a normalidade desse tipo de distúrbios. A quase totalidade dos soldados se vê atingida por ele depois de uma exposição prolongada ao perigo, como o confirmam as experiências da Coréia e do Vietnã (200 a 240 dias de presença em zonas de operações, a se dar crédito às normas do exercito norte-americano) .
As forças de manutenção da paz, no final do século XX, devem também beneficiar-se com um atendimento psiquiátrico tanto mais intenso quanto como mais freqüente surgem os distúrbios psíquicos entre esses “combatentes” de um novo tipo que podem servir de alvo, mais não podem usar suas armas, a não ser em função de regras muito estritas para poder dispará-las. Sentem por isso a impressão de não estarem na guerra nem combatendo, mais no centro de um “massacre” do qual se sentem as vítimas preferenciais (cf.ROUZEAU, 2008, p. 388-389).
A psiquiatria militar contemporânea indica-nos que, embora menos contundentes, outros espetáculos visuais podem ocasionar graves sofrimentos psíquicos: por exemplo, os cavalos feridos ou mortos, que facilmente evocam a sorte dos homens em vista da contigüidade antropológica entre os primeiros e os segundos; as ruínas, que também remetem à corporeidade dado que o habitat é o envoltório protetor do corpo humano; as florestas destruídas pelo fogo cerrado, com a árvore se tornando por sua vez metáfora do corpo humano. O ouvido é também solicitado, por exemplo, quando se ouvem, insuportáveis, os gritos dos feridos. O ouvido fica saturado com o estrondo das explosões, cuja vibração pode atravessar o corpo a tal ponto que cria depois de certo tempo um torpor particular que em induz muitos soldados ao sono, às vezes sem querer, sob o martelar dos tiros. O tato também fica comprometido: assim, quando não se pode evitar passar por cima do corpo de camaradas mortos ou feridos – situação freqüente nas trincheiras e corredores estreitos da Grande Guerra. Ou quando são projetados sobre sua própria pele fragmentos de carne ou de ossos provenientes de camaradas feridos perto deles (cf.ROUZEAU, 2008, p. 390).
Muitos distúrbios psíquicos, ligados a essa experiências sensoriais, se inscreveram depois no longo prazo. Entre as tropas britânicas, que tomaram parte na guerra da Malvinas em 1982, foram registradas 50% de neuroses traumáticas cinco anos depois do fim dos combates. Os norte-americanos chamaram de PTSD (post traumatic stress disorders) as neuroses que surgiram depois do combate, geralmente após um período de latência de alguns meses; os franceses preferem falar de “trauma” para designar espetáculos – geralmente visuais – que “arrombaram” a psique dos combatentes. Muitas vezes um simples olhar, ou de um inimigo que quis te matar ou que se quis matar, e através do qual o sujeito “se viu morto”, em um súbito desaparecimento da “ilusão de imortalidade”. Seja como for, hoje se sabe que o custo da experiência do combate moderno não é apenas de ordem corporal. Tudo acontece como se as formas do combate no século XX houvessem ultrapassado as capacidades psíquicas de adaptação e de resistência dos soldados encarregados de executá-las (cf.ROUZEAU, 2008, p.390-391).





3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O papa João Paulo II na encíclica Sollicitudo rei socialiso afirma que “o desenvolvimento é o novo nome da paz” na era moderna e prossegue: Um desenvolvimento somente econômico não está em condições de libertar o homem; pelo contrário, acaba até por escravizá-lo mais. Um desenvolvimento que não abranja as dimensões culturais, transcendentes e religiosas do homem e da sociedade menos ainda contribui para a verdadeira libertação, na medida em que não reconhece a existência de tais dimensões e não orienta para elas as próprias metas e prioridades. O ser humano será totalmente livre só quando for ele mesmo, na plenitude dos seus direitos e deveres; o mesmo se deve dizer da sociedade inteira. Assim, nas palavras do pontífice, o obstáculo principal a superar para uma verdadeira libertação é o pecado, roborado pelas estruturas que ele suscita à medida que se multiplica e se expande .
Na realidade, se a questão social adquiriu uma dimensão mundial, foi porque a exigência de justiça só pode ser satisfeita neste mesmo plano. Não atender a tal exigência poderia propiciar o irromper duma tentação de resposta violenta, por parte das vítimas da injustiça, como acontece na origem de muitas guerras. As populações excluídas da repartição equitativa dos bens, destinados originariamente a todos, poderiam perguntar-se: por que não responder com a violência a quantos são os primeiros a tratar-nos com violência? E se a situação se examinar a luz da divisão do mundo em blocos ideológico já existente em 1967? Como as conseqüentes repercussões e dependências econômicas e políticas que isso acarreta o perigo.
Concluímos que as conseqüências de semelhante estado de coisas manifestam-se no agravamento de uma chaga típica e reveladora dos desequilíbrios e dos conflitos do mundo contemporâneo, como dizia João Paulo II. Os milhões de refugiados das guerras, as calamidades naturais, as perseguições e as discriminações, de todas as espécies, privaram o homem de sua própria casa, do trabalho, da família e da pátria. A tragédia destas multidões se reflete no rosto arrasado de homens, mulheres e crianças, que, num mundo dividido e que se tornou inospitaleiro, não conseguem mais encontrar um lar. Lares seqüestrados pelas atrocidades geradas pelas guerras, que não só capturam lares, mas também vidas, famílias e utopias que possui a humanidade, destituindo-a de racionalidade, perturbando sua sanidade psíquica e seqüestrando seu sentido de vida para alcançar a felicidade.





REFERÊNCIA


ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfred Bosi. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


BURNS, Edward Mcnall. História da civilização ocidental. Trad. Lourival Machado; Lourdes Machado. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Globo, 1952.


CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo 3: As mutações do olhar. O século XX. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.










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