quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A ERA DOS DIREITOS & O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE



A ERA DOS DIREITOS

Charles Fernando Gomes[1]

1. INTRODUÇÃO

            Na obra O tempo da memória, escreve Bobbio: Entre as várias formas de pacifismo, religioso, moral, político, minhas preferências voltaram-se para o pacifismo jurídico, segundo o qual a solução pacífica dos conflitos depende da presença de um Terceiro acima das partes, em condições não apenas de julgar quem tem e quem não tem razão, mas também de fazer observar em última instância a própria decisão. Em relação à pergunta sobre como é possível uma cidade não violenta, ou, menos violenta do que aquela que marcou nossa história milenar, entre os dois extremos – da ação diplomática mais facilmente praticável, mas insuficiente, e da educação para a paz, certamente mais eficaz e mais difícil de realizar – dei preferência por razões ligadas a minha formação cultural e devido a uma natural tendência para acreditar que a virtude esta no meio, àquela que defende a criação de novas instituições que aumentem os vínculos recíprocos entre os Estados, ou, o fortalecimento daquelas, entre as velhas, que deram bons resultados ate agora. Estou plenamente consciente de que se trata de uma meta ideal. Mas se não propusermos uma meta, não estaremos nem ao menos a caminho dela (cf. BOBBIO, 1997, p.161).    
A obra supracitada é uma autobiográfica do autor, esta que resguarda os maiores anseios do intelectual no que tange a necessidade de novos processos civilizatórios do Estado para a promoção da paz entre os homens. Na obra A era dos direitos, mas especificamente na primeira parte (que é nosso foco), Bobbio assegura que as constituições modernas baseiam-se na proteção dos direitos do homem, proteção esta que depende da paz e da democracia. A paz, os direitos do homem e a democracia constituem situações interdependentes onde ambas são pressupostas mutuamente. Bobbio prefigura três premissas baseadas em seus estudos que irão alicerçar as demais conclusões, são: os direitos naturais são históricos; e eles nascem no início da era moderna tornando-se indicadores do progresso histórico. O Estado Moderno ocasionou (dentre outras coisas) uma mudança no modo de encarar a relação política, descentralizando a figura do soberano, ocasionando a consideração dos direitos do cidadão.
O autor sustenta que gênese da afirmação dos direitos do homem teve origem de uma inversão de perspectiva. A relação que antes se centrava na pessoa do soberano é substituída pela relação cidadãos/Estado, destituindo a antiga estrutura súditos/Soberano. Desta dialética que fora evoluída e transformada, origina-se os direitos do cidadão, que será pertencente ao Estado, e este cederá espaço para o reconhecimento dos direitos do cidadão cosmopolita semelhantemente a Declaração Universal dos direitos do homem.
Para Bobbio, os direitos são oriundos da evolução histórica. Classificou-nos como: direitos em direitos de primeira geração (representados pelos direitos civis; as primeiras liberdades exercidas contra o Estado); segunda geração (representados pelos direitos políticos/sociais bem como seu perdão em razão do indulto, direitos de participar do Estado), terceira geração (econômicos, sociais e culturais; cujo mais importante seria o representado pelos movimentos ecológicos) e quarta geração (exemplificados pela pesquisa biológica, defesa do patrimônio genético etc.). Compreendemos diante desta classificação do autor, que os direitos nascem de acordo com o progresso técnico da sociedade, ou seja, as fases ou gerações refletem as evoluções tecnológicas da sociedade, que geram necessidades aos indivíduos (cf. BOBBIO, 1990, p. 36-37).

2. OS TRÊS TEMAS DE BOBBIO ACERCA DE UM FUNDAMENTO ABSOLUTO

No primeiro capítulo, Bobbio expõe três temas: sentido do fundamento absoluto dos direitos do homem, a possibilidade de um fundamento absoluto e, caso seja este possível e também desejável. Há, no entanto, o direito positivado e o direito que, embora possua legitimidade, é apenas desejado. Bobbio (como também é filósofo) escolhe analisar a possibilidade de um fundamento absoluto de maneira a enfrentar um problema de direito racional ou crítico (direito natural, no sentido restrito). Analisando este problema do fundamento absoluto, Bobbio conclui que este fundamento absoluto[2] (inquestionável), defendido pelo jusnaturalismo, é impossível e infindável atualmente (cf. BOBBIO, 1990, p. 36-37).
            No que diz respeito ao segundo tema, são elevadas quatro dificuldades: primeiro a expressão "direitos do homem" é muito genérica ocasionando ambiguidade; segundo é que os direitos do homem são mutáveis de acordo com a época histórica, o que prova e inexistência de direitos fundamentais por natureza; terceiro diz respeito aos direitos do homem ser heterogêneos, oscilam diferenças e divergem entre si. Assim, seria mais aceitável que os direitos do homem possuíssem diversos fundamentos. Bobbio considerava poucos os direitos fundamentais, devido a entrarem repetidamente em concorrência com outros direitos tidos como igualmente fundamentais tornando difícil a tarefa de eleger. Pelas razões expostas, Bobbio afirma que os direitos que têm eficácia diversa não podem possuir o mesmo fundamento e, ainda, que os direitos fundamentais não podem ter um fundamento absoluto (cf. BOBBIO, 1990, p. 42-44).

3. DECLARAÇÕES MODERNAS

           As declarações modernas no que tange os direitos do homem trazem os chamados direitos sociais, além das liberdades tradicionais. Estes exigem obrigações negativas, um não fazer; já os sociais só se realizam mediante a realização de obrigações positivas. São diversos e antinômicos entre si, uma vez que não podem coexistir integralmente. O problema estaria, então, em proteger os direitos do homem (questão política), e não tanto em justificá-los (filosofia). Logo, a crise dos fundamentos deve ser superada, de acordo com os casos concretos e seus diversos fundamentos, e não em um único fundamento (cf. BOBBIO, 1990, p. 42-44).
Analisada a problemática atual, Bobbio observou a impossibilidade de definir ou fundamentar a natureza dos direitos do homem e a incapacidade de saber qual a maneira mais eficaz de defendê-los. Não são mais problemas filosóficos e nem jurídicos, ou seja, a dificuldade da concretização dos direitos do homem não seria filosófico, tampouco moral ou jurídico, mas seria um problema dependente do desenvolvimento global da sociedade. Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são universalmente respeitados a partir do momento em que seus fundamentos são reconhecidos universalmente. No entanto, esse problema cede lugar ao problema da garantia dos direitos, uma vez que o problema do fundamento não é inexistente, e sim resolvido, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1848 (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44).
Os valores elencados pela Declaração possuem consenso geral acerca da sua validade. Nesse ponto, Bobbio enumera três modos de fundar valores: "deduzi-los de um dado objetivo constante", como a natureza humana, por exemplo, que possui maior garantia de validade; "considerá-los como verdades evidentes em si mesmas"; "descoberta que, num dado período histórico, eles são geralmente aceitos", que é o consenso (os valores são tanto mais fundados quanto mais aceitos). Esse último é histórico e, portanto, é o único que pode ser empiricamente comprovado, como se deu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Essa declaração representou um marco: foi a primeira vez que um sistema de princípios fundamentais de conduta humana foi livre e expressamente aceito pela maioria dos seus destinatários. Provou, com isso, que a humanidade partilha de valores comuns e que, por isso, existe certa universalidade de valores (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44).
Bobbio explica que esse universalismo de valores representou uma conquista lenta, que na história tiveram as declarações três fases: fase de teoria filosófica, fase do seu acolhimento pelo legislador e a fase em que a afirmação dos direitos se tornou universal e positiva. Essa última se deu com a Declaração de 1948, onde os princípios deverão ser efetivados concretamente e destinados a todos os homens, indistintamente. Mas Bobbio adverte que a Declaração Universal representa apenas o início de um longo processo, de supressão das dificuldades em implementar medidas eficientes de garantia internacional. Ainda, os direitos são históricos, e, portanto, a Declaração irá se amoldando aos novos valores absorvidos pela sociedade, de modo a não se cristalizar no tempo (cf. BOBBIO, 1990, p. 42-44).
Para Bobbio, dos direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um fundamento absoluto que torne um direito e seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão, em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras e, Bobbio, prossegue a um terceiro passo que é “conseguir de modo mais rápido e eficaz o reconhecimento e a realização dos direitos do homem. Diferente do dogma do racionalismo ético segundo a ilusão do jusnaturalismo, o qual os valores últimos não podem ser demonstrados como teoremas, mas para asseguração de sua realização (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44). O que é desmentido pela experiência histórica, reconhecidos em duas eras. A era dos direitos dos homens e posteriormente a década da declaração universal dos direitos do homem.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS     

            “Porque para sobreviver nos precisamos de padrões éticos globais?” Este foi o tema de palestra de Hans King em Davos. King é um teólogo ecumênico. Sua frase mais conhecida foi tema de um simpósio em 1989 pela UNESCO, em Paris, na qual ele diz: “Não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões”. Porém, como fazer junção entre as instituições e um diálogo comum? E qual seria a relação ética entre o discurso teológico de King e o discurso jurista e político de Bobbio? Caberia esta relação/discussão entre ambas (cf. KING, 1999, p. 9)?
            Bobbio semelhantemente a King, é intelectual e almeja paz no Estado por via de um caminho ética (seja o primeiro pelos direitos e o segundo por um projeto global). Ambos desbravam um caminho arenoso ao estabelecer práxis éticas seja estas por vias do direito ou por vias de um ensaio civilizatório global. A busca de uma forma de sobrevivência que não deixe ninguém de fora, isto é, que não seja excludente como nos revela a história desde sua gênese. Uma ética global, mas que alie paz entre as religiões através de um consenso intersubjetivo estabelecido por direitos feitos pelos e para os homens. Incluindo benefícios dos homens e não de uma parte elitizada. Alheia a dogmas e fundamentos históricos fabricados, mas fundante da dignidade e proteção do homem cosmopolita.  
Podemos observar que a exigência histórica revela a escrupulosa realização dos direitos proclamados, pois, os direitos do homem é uma meta desejável, mas não basta essa convicção necessita-se de condições favoráveis. Bobbio afirma que o problema fundamental em relação aos direitos dos homens, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. É inegável que há uma crise de fundamentos diagnosticados pelo autor, porém nossa tarefa é buscar em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode ser realizado.
            Por fim, este estudo é tarefa das ciências históricas e sociais. O problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas filosóficos, históricos, sociais, econômicos e psicológicos inerentes a realização do ser humano. O problema dos fins está associado ao problema dos meios. Isso significa que o filósofo não está sozinho e se obstinar-se a permanecer sozinho, condena à filosofia a esterilidade, pois, a crise de fundamentos é também aspecto da crise da filosofia (cf. BOBBIO, 1990, p. 43-44).       








1. INTRODUÇÃO

Na obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, mas especificamente no primeiro capítulo intitulado A natureza modificada do agir humano, Hans Jonas afirma que sua primeira questão é a respeito do modo como essa técnica afeta a natureza do nosso modo de agir, até que ponto ela torna o agir sob seu domínio algo diferente do que existiu ao longo dos tempos. Durante esses períodos, esclarece o autor, o homem nunca esteve desprovido de técnica. Assim, o centro de sua questão visa à diferença humana entre a técnica moderna e a dos tempos anteriores.
Toda ética até hoje seja como injunção direta para fazer ou não fazer certas coisas ou como determinação dos princípios de tais injunções, ou ainda como demonstração de uma razão de se obedecer a tais princípios compartilhou tacitamente os seguintes pressupostos inter relacionados: a condição humana, conferida pela natureza do homem e pela natureza das coisas; com base nesses fundamentos, pode-se determinar sem dificuldade e de forma clara aquilo que é bom para o homem; o alcance da ação humana, e, portanto da responsabilidade humana é definida de forma rigorosa. A argumentação que se segue pretende demonstrar que esses pressupostos perderam a validade e refletir sobre o que significa para a nossa situação moral (cf. JONAS, 2006, p. 29).
A violação da natureza e a civilização do homem caminham de mãos dadas. Ambas enfrentam os elementos. Uma, na medida em que ele se aventura na natureza e subjuga as suas criaturas; a outra, na medida em que erige no refúgio da cidade de sua vida humana. Amolda as circunstâncias conforme sua vontade e necessidade, e nunca se encontra desorientado, a não ser diante da morte. Assim, o homem confrontado com os elementos, continua pequeno, pois, não importa para quantas doenças o homem ache a cura, a mortalidade não se dobra a astucia (cf. JONAS, 2006, p. 32).

2. Características da Ética até o presente momento

Todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era (a exceção da medicina) eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a techne, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engaja-se o máximo esforço e a participação de humanos. A verdadeira vocação do homem encontrava-se alhures. Em suma, a atuação sobre objetos não humanos não formava um domínio eticamente significativo (cf. JONAS, 2006, p. 35).
 A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda a ética tradicional é antropocêntrica. Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “homem” e sua condição fundamental era considerada como constante quanto à sua essência, não sendo ela própria objeto da techne (arte) reconfiguradora. A ética tinha a ver com o  aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, como as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O homem bom era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cultivava em si a capacidade para tal, e que no mais conformava-se com o desconhecido(cf. JONAS, 2006, p. 35-36).
Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. “Ama a teu próximo a ti mesmo”; “Faze aos outros o que gostarias que eles fizessem a ti”; “Instrui teu filho no caminho da verdade”; “Almeja a excelência por meio do desenvolvimento e da realização das melhores possibilidades da tua existência como homem”; “Submete o teu bem pessoal ao bem comum”; “Nunca trate os teus semelhantes como simples meios, mas sempre como fins em si mesmos”; e assim por diante. Em todas essas máximas, aquele que age e o “outro” de seu agir sãos partícipes de um presente comum. Os que vivem agora e os que de alguma forma tem transito comigo são os que tem alguma reivindicação sobre minha conduta, na medida em que esta os afete pelo fazer ou pelo omitir. O universo moral consiste nos contemporâneos, e o seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. Com o horizonte espacial do lugar ocorre algo semelhante, no qual o que age e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos, como superior hierárquico e subalterno, como o mais forte e o mais fraco, e em todos os outros papéis nos quais os homens tem a ver um com os outros. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera da ação. Segue-se daí que o saber exigido ao lado da vontade moral, para afiançar a moralidade da ação, corresponde a esta delimitação: não é o conhecimento do cientista ou do especialista, mas o saber de um tipo que se encontra ao alcance de todos os homens de boa vontade[3] (cf. JONAS, 2006, p. 36).
Se uma ação é boa ou má, tal é inteiramente decidido no interior desse contexto de curto prazo. Sua autoria nunca é posta em questão, e sua qualidade moral é imediatamente inerente a ela. Ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários posteriores de um ato bem-refletido e bem-executado. O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; A pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente (cf. JONAS, 2006, p. 37).

2.1 NOVAS DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE

A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres ela exigirá? Haverá algo mais do que o interesse utilitário? É simplesmente a prudência que recomenda que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não se serre o galho sobre o qual se esta sentado? Mas “este” que aqui se senta e que talvez caia do precipício – quem é? E qual é o meu interesse no seu sentar ou cair (cf. JONAS, 2006, p. 39-40)?
Toda a ética tradicional contava somente com um comportamento não cumulativo. E a cumulação como tal, não contente em modificar o seu início até a desfiguração, pode até mesmo destruir a condição fundamental de toda a seqüência, o pressuposto de si mesma. Tudo isso deveria estar compreendido na vontade do ato singular, caso este deva ser moralmente responsável (cf. JONAS, 2006, p. 40). Sendo assim, o novo papel do saber na moral consiste numa ética que reconhece sua ignorância e obrigada o saber vigente a se autocontrolar frente ao excessivo poder humano que constitui a era tecnológica.    
A alteração acerca das substâncias dos fundamentos da ética consiste na procura não só do bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano. Nenhuma ética anterior (além da religião) nos preparou para um tal papel de fiel depositário – e a visão científica de natureza, menos ainda. Esta última recusa-nos até mesmo, peremptoriamente, qualquer direito teórico de pensar a natureza como algo que devamos respeitar – uma vez que ela a reduziu à indiferença da necessidade e do acaso, despindo-a de toda dignidade de fins. Entretanto, um apelo mudo pela preservação de sua integridade parece escapar da plenitude ameaçada do mundo vital. Devemos ouvi-lo, reconhecer sua exigência como obrigatória – porque sancionada pela natureza das coisas –, ou então devemos ver nele, pura e simplesmente, um sentimento nosso, com o qual devemos transigir quando quisermos ou na medida em que pudermos nos dar ao luxo de fazê-lo? A primeira alternativa, se tomada a sério em suas implicações teóricas, nos impeliria a estender a reflexão sobre as alterações mencionadas e avançar além da doutrina do agir, ou seja, da ética, até a doutrina do existir, ou seja, da metafísica, na qual afinal toda ética deve estar fundada. Isto é, Jonas inclui o cuidado com estes conceitos do bem humano e diz que deveríamos nos manter abertos para a idéia de que as ciências naturais não pronunciam toda a verdade sobre a natureza (cf. JONAS, 2006, p. 41-42).
Na nova era tecnológico o homo faber esta acima do homo sapiens. Assim, o triunfo do homo faber sobre o seu objeto externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo na constituição interna do homo sapiens, do qual ele outrora costumava ser uma parte servil. Em outras palavras, mesmo desconsiderando suas obras objetivas, a tecnologia assume um significado ético por causa do lugar central que ela agora ocupa subjetivamente nos fins da vida humana (cf. JONAS, 2006, p. 43).
O homem atual é cada vez mais o produtor daquilo que ele produziu e o feitor daquilo que ele pode fazer; mas ainda, é o preparador daquilo que ele, em seguida, estará em condição de fazer. Mas quem é ele? Nem vocês nem eu: importam aqui o ator coletivo e o ato coletivo, não ao ator individual e o ato individual; e o horizonte relevante da responsabilidade é fornecido muito mais pelo futuro indeterminado do que pelo espaço contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de outro tipo. Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública. Nunca antes a política publica teve de lidar com questões de tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão longas. De fato, a natureza modificada do agir humano altera a natureza fundamental da política (cf. JONAS, 2006, p. 43-44).

2.2 A cidade universal como segunda natureza e o dever ser Do homem NO MUNDO

Questões que nunca foram antes objetos de legislação ingressam no circuito das leis que a cidade global tem de formular para que possa existir um mundo para as próximas gerações de homens.
A presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível de onde partia toda idéia de dever referente a conduta humana: agora, ela própria tornou-se um objeto de dever, isto é, o dever de proteger a premissa básica de todo o dever, ou seja, precisamente a presença de meros candidatos a um universo moral no mundo físico do futuro;  isso significa, entre outras coisas, conservar este mundo físico de modo que as condições para uma tal presença permaneçam intactas; e isso significa proteger sua vulnerabilidade diante de uma ameaça dessas condições (cf. JONAS, 2006, p. 44-45).

2.3 VELHOS E NOVOS IMPERATIVOS

O imperativo categórico de Kant dizia: haja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei universal. Aqui, o “que tu possas” invocado é aquele da razão e de sua concordância consigo mesmo: a partir da suposição da existência de uma sociedade de atores humanos (seres racionais em ação), a ação deve existir de modo que possa ser concebida, sem contradição, como exercício geral, da comunidade. O imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: haja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra; ou, expresso negativamente haja de modo a que os efeitos da tua ação não seja destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida; ou, simplesmente: não ponha em perigo a condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra; ou, em um uso novamente positivos: inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer (cf. JONAS, 2006, p. 47-48).
Sendo assim o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade. Pois segundo Jonas, nós não temos o direito de escolher a não existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de colocá-las em risco. O novo imperativo clama por outra coerência: não a do ato em consigo mesmo, mas a dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana no futuro, isto é, seu imperativo se estende em direção a um previsível futuro concreto, que constitui a dimensão inacabada de nossa responsabilidade (cf. JONAS, 2006, p. 49-50).

3. O HOMEM COMO OBJETO DA TÉCNICA

A tese que vigora pauta-se nos novos tipos e limites do agir que exige uma ética de previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações com as quais elas tem de lhe dar. Vimos que estas são as situações que emergem das obras homo faber na era da técnica. Mas ainda não mencionamos a classe potencialmente mais funesta dessas obras de novas espécies. Situamos a techne apenas em sua aplicação no domínio não humano. Mas o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. Essa culminação de seus poderes, que pode muito bem significar a subjugação do homem, esse mais recente emprego da arte sobre a natureza desafia o ultimo esforço do pensamento ético, que antes nunca precisou visualizar alternativas de escolha para o que se considerava serem as características definitivas da constituição humana (cf. JONAS, 2006, p. 57).
Torne-se como exemplo o mais fundamental desses fatos, a mortalidade do homem. Quem alguma vez precisou se decidir sobre qual seria sua duração desejável o opcional? Hoje, porém, certos progressos na biologia celular nos acenam com perspectiva de atuar sobre os processos bioquímicos de envelhecimento, ampliando a duração da vida humana, talvez indefinidamente. A morte não parece mais ser uma necessidade pertinente a natureza do vivente, mas uma falha orgânica evitável; suscetível, pelo menos, de ser em principio tratável e adiável por longo tempo (cf. JONAS, 2006, p. 58).
Ao longo tempo do caminho da crescente capacidade de manipulação social em detrimento da autônima individual, em algum lugar se deverá colocar a questão do valor, do valer a pena de todo o empreendimento humano. Sua resposta deve buscar a imagem do homem, da qual nos sentimos devedores. Devemos repensá-la a luz de hoje podemos fazer com ela ou fazemos a ela e que nunca podemos fazer anteriormente.
A mesma exigência se impõe em grau ainda mais alto com respeito a o ultimo objeto de uma tecnologia aplicada ao homem – o controle dos homens genéticos futuros. Aqui Jonas se reserva a apontar esse sonho ambicioso do homo faber, condensado na frase de que homem quer tomar em suas mãos a sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em sua integridade, mas de melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio projeto. Mas, quem serão os criadores de imagens, conforme tais modelos com base em qual saber? Aqui cabe também a pergunta sobre o direito moral de fazer experimentos com seres humanos futuros. Essas perguntas e outras semelhantes, que exigem uma resposta antes que nos deixemos levar a uma viagem ao desconhecido, mostram de forma contundente até que ponto o nosso poder de agir nos remete para além dos conceitos de toda ética anterior (cf. JONAS, 2006, p. 61).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A natureza nova do nosso agir exige um nova ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional a amplitude do nosso poder, ela também exige, em nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade. Uma humildade não como a do passado, em decorrência da pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza do nosso poder, pois a um excesso do nosso poder de fazer sobre o nosso poder de prever e sobre o nosso poder de conceber valor e julgar. Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das conseqüências últimas é motivo para ma contenção responsável – a melhor alternativa à falta da própria sabedoria (cf. JONAS, 2006, p. 63-64).
Agora tememos na nudez de um niilismo no qual o maior dos poderes se une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao menor dos saberes sobre para que utilizar tal capacidade. Busca-se uma ética que possa controlar os poderes extremos que hoje possuímos e que nos vemos obrigados a seguir conquistando e exercendo. Diante de ameaças iminentes, cujos efeitos ainda podem nos atingir, frequentemente o medo constitui o melhor substituto para a verdadeira virtude e a sabedoria. Porém, até aqui apresentamos a pertinência das pressuposições: o nosso agir coletivo-cumulativo-tecnológico é de um tipo novo, tanto no que se refere aos objetos quanto sua magnitude. Por seus efeitos, independentemente diretas, ele deixou de ser eticamente neutro. Com isso se inicia a tarefa propriamente dita de se buscar uma resposta (cf. JONAS, 2006, p. 65-66).
Concluo com as palavras de Martin Heidegger (que fora professor de Hans Jonas) em sua magna obra Ser e Tempo: Se a temporalidade constitui o sentido ontológico originário da pre-sença onde esta em jogo o seu próprio ser, então a cura deve precisar de tempo. A temporalidade da pre-sença constrói a “contagem do tempo” (cf. HEIDEGGER, 2002, p. 9). O que nos leva a compreender, é que uma ética da responsabilidade, antes necessita de um imperativo que considere a dimensão do cuidado, isto é, da cura que esta no tempo e hoje mais do que outrora passa da era antropocêntrica tecnológica para o imperativo da era biocêntrica (a vida como centro de nossas atenções). O dasen (ser aí) enquanto pre-sença no mundo e do mundo deve despertar a co-partcipação e co-responsabilidade do homem com a geração da vida na Terra.
O imperativo contemporâneo ou pós-moderno (como intitula alguns pensadores) clama por ética franciscana. Que se inspire nos gestos de Francisco de Assis (século XII), convidando-nos a assumir uma relação de irmandade e de uma profunda amorosidade com todos os seres e todas as coisas do universo, amorosidade esta que conduza a uma verdadeira conscientização e comprometimento do homem, transcendendo sua racionalidade.
Santo Agostinho (século V) disse: “(...) não queiras ir para fora. Entra em ti mesmo, pois é no interior do homem que habita a verdade. E se achares que tua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo. Mas, ao te transcender, lembra de transcender tua própria razão” [4]. Assim, intuímos segundo as palavras de Agostinho, que o imperativo que hoje vigora consiste em inserir no homem a consciência de que ele é um ser que se integra como parte e parcela do todo, ou seja, o ser humano como um nó de relações que dialoga com todo o universo. Isto é, uma célula de uma grande rede de comunicações e de informações que é o mundo e que hoje clama por seres humanos mais humanos ou como dizia Nietzsche” demasiadamente humanos”. Necessitamos de seres mais racionais (não necessariamente kantianos), porém uma racionalidade que transcende a própria razão e desperte o que há de mais genuíno no ser humano, isto é, sua capacidade de abertura e ampliação de seus próprios horizontes, que é o que torna o homem um ser mais ético, cuidadoso, caridoso, compassivo e responsável consigo e com o próximo, desde o mais próximo ao mais distante[5].  









REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfred Bosi. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BOBBIO, Noberto.A Era dos Direitos, Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992.
BOBBIO, Noberto.O tempo da memória:  DE senectute e outros escritos autobiográficos, Tradução de Daniela Versiani, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1997.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback; Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2002.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. De Marijane Lisboa e Luiz Barros. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
KING, Hans. Projeto de ética mundial; Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana 3. Ed São Paulo: Paulinas, 1999.



   


 

    


      



[1] Graduando em Filosofia pela PUCPR.
[2] Para Kant a liberdade seria um direito absoluto, afirmação que se difere da posição de Bobbio.
[3] Kant chegou a dizer que em matéria da moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes simples (Fundamentação da Metafísica dos Costumes); Aristóteles diz que no agir moral esta implicado em conceito universal do bem, mas sua transposição para a prática exige um conhecimento do aqui e agora, e este é inteiramente não teórico. 
[4] AGOSTINHO. De vera religione, XXIX, 72.
[5] Parágrafo inspirado nas palavras do frei Clodovis Boff em sua conferencia sobre Busca e sentido da vida proferida no dia 12 de novembro de 2009, em virtude do evento Cultura e Fé promovida pela Pastoral Comunitária da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 

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