segunda-feira, 11 de maio de 2009

VERNANT


VERNANT, Jean-Pierre. Origens do pensamento grego. São Paulo: DIFEL, 1972.

Charles Fernando Gomes[1]

O universo que marca o nascimento da razão grega é datado da passagem que se caracteriza do mito ao logos ou da cosmogonia para a cosmologia. Este novo caminho que os gregos trilham é o resultado do desabamento do poder micênico, do sistema de governo que era centrado na “civilização palaciana”, isto é, o rei como o soberano que possuía plenos poderes, estes que se estendiam no plano religioso, político, administrativo, econômico e comercial.

Mas, se queremos dar seguimento ao registro dessa razão grega, seguir a via por onde ela pode livrar-se de uma mentalidade religiosa, indicar o que ela deve ao mito e como o ultrapassou, devemos comparar e confrontar como o background micênico, essa viragem do século VIII ao século VII em que a Grécia toma um novo rumo e explica as vias que lhe são próprias: época de mutação decisiva, que, no momento mesmo em que triunfa o estilo orientalizante, lança os fundamentos do regime da Pólis e assegura por essa laicização do pensamento político a advento da filosofia (VERNANT, 1986, p. 06-07).

Quando os gregos redescobrem a escrita, pelo fim do século IX, tomando-a esta vez dos fenícios, não será somente uma escrita de um tipo fonético, mas sim um produto de uma civilização radicalmente distinta: não, mais a especialidade de uma classe de escribas, mas o elemento de uma classe comum. Seu significado social e psicológico ter-se-á também transformado, poder-se-ia dizer invertido: a escrita não terá mais por objeto constituir para uso do rei arquivos no recesso de um palácio; terá correlação doravante com a função de publicidade; vai permitir divulgar, colocar igualmente sob o olhar de todos, os diversos aspectos da vida social e política (VERNANT, 1986, p.25).

O centro da vida social grega agora é estabelecido pela instituição do logos, da palavra, da linguagem e da escrita propriamente dita nas relações sociais. Com a crise do poder soberano, a escrita passa de uma linguagem do rei para uma linguagem pública, isto é, aspectos da vida social e política serão discutidos por todos os partícipes da polis que estão engajados na plenária pública e elaboração organizacional do sistema da cidade.

A separação de deuses e homens, a descontinuidade do “mundo micênico” para o “mundo homérico” e a oratória como um símbolo de disputa política são elementos bem significativos para a compreensão da nova concepção de mundo que se estabelece na Grécia. Desaparecido Ánax que, pela virtude de um poder mais que humano, unificava e ordenava os diversos elementos do reino, novos problemas surgem: como a ordem pode nascer do conflito entre grupos rivais, do choque das prerrogativas e das funções? Como uma vida comum pode apoiar-se em elementos discordantes? Ou para retomar a própria fórmula dos Órficos como no plano social, o uno pode sair do múltiplo e o múltiplo do uno? Poder de conflito poder de união (Eris-Philia): essas duas entidades divinas, opostas e complementares, marcam como que os dois pólos da vida social no mundo aristocrático que sucede às antigas realezas. A exaltação dos valores de luta, de concorrência de rivalidade associa-se ao sentimento de dependência para com uma só e mesma comunidade, para com uma exigência de unidade e de unificações sociais. O mito que antes sugeria de uma narrativa de conflito entre homens e deuses dão lugar ao corpo social que é composto de elementos heterogêneos, de partes ou separado, de classes de funções que se excluem umas às outras, mas cuja mistura e fusão devem, entretanto realizar-se (cf.VERNANT, 1986, p.30-31).

O Estado se despoja de um caráter privado e aparece na questão de todos os cidadãos da polis grega. A vida social é um dos traços que marca a mentalidade da aristocracia guerreira da Grécia antiga e que contribui para dar à noção do poder em um conteúdo novo. A cidade esta agora centralizada na Ágora, espaço comum, sede da Hestia Koiné, espaço público em que são debatidos os problemas de interesse geral. É a própria cidade que se cerca de muralhas, protegendo e delimitando em sua totalidade o grupo humano que a constitui. No local em que se elevava a cidade real, residência privada, privilegiada, ela edifica templos que abre a um culto público. Nas ruínas do palácio, nessa Acrópole que ela consagra doravante a seus deuses, é ainda a si mesma que a comunidade projeta sobre o plano do sagrado, assim se realiza, no plano profano, no espaço da Ágora. Esse quadro urbano define efetivamente um espaço mental, descobre um novo horizonte espiritual. Desde que centraliza na praça pública, a cidade já é, no sentido pleno do termo, uma polis (cf.VERNANT, 1986, p.32-33).

Tendo a escrita como base e centralidade da Paidéia grega, Aristóteles abre suas pesquisas na técnica da linguagem, com o intuito de combater os sofistas, as “prostitutas do saber”. A arte política como um exercício da linguagem, esta é a melhor definição do contexto grego que estamos debruçados, pois, se o combate antes era mítico agora é argumentativo, retórico e o campo desse duelo é a linguagem, esta que será palco de acusações homéricas pelo mau uso do logos feito pelos sofistas. O triângulo que configura o universo espiritual da polis é: a polis, a vida social e a palavra (persuasão) que possui destaque entre as demais sendo ela possuidora de poder para conquistar interesses pessoais e coletivos. Daí a busca do sábio, naquele que se conservam práticas divinatórias e exercícios espirituais. A cidade se dirige ao sábio, quando se sente entregue à desordem e à impureza, se lhe pede a solução de seus males, é precisamente porque ele aparece como um ser a parte, excepcional, um homem divino que todo seu gênero de vida isola e coloca à margem da comunidade. Reciprocamente quando o sábio se dirige a cidade, pela palavra ou por escrito, é sempre para transmitir-lhe uma verdade que vem do alto e que, mesmo divulgada não deixa de pertencer a outro mundo, estranha a vida ordinária (VERNANT, 1986, p.40).

Aristóteles afirma que “dirigiam seus olhares para a organização da Pólis, inventaram as leis e todos os seus vínculos, que reúnem as partes de uma cidade, e essa invenção, nomearam-na Sabedoria, é desta sabedoria (anterior a sabedoria física, a physiké theoria, e à Sabedoria suprema que tem por objeto as realidades divinas) que foram providos os Sete Sábios, que precisamente inventaram as virtudes próprias do cidadão”. Entretanto, o papel político e social atribuído aos sábios, as máximas que são consideradas de sua autoria, permitem aproximar, uns dos outros, personagens que, quanto ao resto, em tudo se opõem: um Tales, unindo a tantas outras competências a do homem do Estado, um Sólon, poeta elegíaco, árbitro das lutas políticas atenienses, recusando a tirania, um Periandro, tirano Corinto, um Epimênides, o próprio tipo do mago inspirado, do theios aner, que se alimentava de malva e de asfódelo, e cuja alma se liberta do corpo, à vontade. Através de uma mistura de dados puramente lendários, de alusões históricas, de sentenças políticas e de chavões morais, a tradição mais ou menos mítica dos sete sábios faz-nos atingir e compreender um momento de história social. Momento de crise, que começa no fim do século VII e se desenvolve no VI, período de confusões e de conflitos internos de que distinguimos algumas das condições econômicas; período que os gregos viveram, num plano religioso e moral, como uma discussão de todo seu sistema de valores, um golpe contra a própria ordem do mundo, um estado de erro e impureza (VERNANT, 1986, p.49).

Dentro da organização do cosmos humano, a virtude é encarada como um esforço penoso, ascético diferentemente da riqueza que simbolizará da hybris, o orgulho e a maldade que desvirtua o homem. A busca que deve orientar o grego é a busca da justa-medida, do ethos da justiça que harmonizará a polis e distanciará a sedição do Estado que é causado pela hibris. Mas, quem será esse homem justo? Será o sábio, aquele que confia no tempo e dele aprende a sophrosyne, o sábio como aquele que é portador do domínio-de-si, do bom senso. A sophrosyne aparece como um caráter essencialmente social, um comportamento marcado pelo comedimento dos sentidos e do pathos. Este como o salvador da cidade e conhecedor nato do cuidado-de-si que nasce aliado do cuidado-com-os-outros, instaurador da ordem no mundo da cidade.

Os gregos acrescentam assim uma nova dimensão à história do pensamento humano. Para resolver as dificuldades teóricas, as aporias que o próprio progresso de seus processos fazia surgir, a filosofia teve de forjar para si uma linguagem, elaborar seus conceitos, edificar uma lógica, construir sua própria racionalidade. Para o pensamento grego, se o mundo social deve estar sujeito ao número e à medida, a natureza representa de preferência o domínio do “aproximadamente” ao qual não se aplicam nem cálculo exato nem raciocínio rigoroso. A razão grega é a de que maneira positiva, refletida, metódica, permite agir sobre os homens, não transformar a natureza. Dentro de seus limites como em suas inovações, é filha da cidade (cf.VERNANT, 1986, p.94-95).

Por fim, podemos compreender que da racionalidade grega, o sábio constitui o arquétipo (o modelo) do cidadão grego. Apesar da passagem da cosmogonia para a cosmologia, o logos se torna um mito para o cidadão, pois, quem for seu possuidor obterá a pedra filosofal, o sagrado que é verbo, a palavra, a razão. A explicação da gênese do mundo, o agir sobre os homens, a preocupação política e a razão são questões de ordem geradora e causadora do mundo, constitutivas do “milagre grego” e que perpassará ao longo a história da filosofia ocidental.


[1] Graduando em Filosofia pela PUCPR.

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