segunda-feira, 11 de maio de 2009

NIETZSCHE


NIETZSCHE. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores)

Charles Fernando Gomes[1]

Como afirmar que de fato a filosofia nasceu com os gregos? Nietzsche coloca em cheque esta afirmativa e desbrava o caminho da busca de uma autenticidade da gênese filosófica. O espetáculo começou e todos estão convidados a retirar a cortina do palco para assistir a peça, Nietzsche afirma que era sem dúvida um espetáculo curioso, quando colocavam lado a lado os pretensos mestres do oriente e os possíveis alunos da Grécia e exibiam agora Zoroastro ao lado de Heráclito, os hindus ao lado dos eleatas, os egípcios ao lado de Empédocles, ou até mesmo Anaxágoras entre os judeus e Pitágoras entre os chineses. No particular, pouca coisa ficou resolvida; mas já a idéia geral, nós a aceitaríamos de bom grado, contanto que não nos viessem com a conclusão de que a filosofia, com isso, germinou na Grécia apenas como importada e não de um solo natural doméstico, e até mesmo que ela, como algo alheio, antes arruinou do que beneficiou os gregos. Nada é mais tolo do que atribuir aos gregos uma cultura autóctone: pelo contrário, eles sorveram toda a cultura viva de outros povos e, se foram tão longe, é precisamente porque sabiam retomar a lança onde um outro povo a abandonou para lançá-la mais longe (NIETZSCHE, 1974, p.39).

“O caminho em direção aos inícios leva por toda parte à barbárie”, Nietzsche afirma que todo aquele que se dedica aos gregos deve ter sempre presente que o impulso de saber, sem freios, é em si mesmo, em todos os tempos “tão bárbaro quanto o ódio ao saber, e que os gregos, por consideração à vida, por uma ideal necessidade de vida, refrearam seu impulso de saber, em si insaciável porque aquilo que eles aprendiam queriam logo viver”. Os gregos filosofaram também como homens civilizados e com os alvos da civilização e, por isso, pouparam-se de inventar mais uma vez, por alguma presunção autóctone, os elementos da filosofia e da ciência, mas partiram logo para cumprir, aumentar, elevar e purificar esses elementos adquiridos, de tal modo que somente agora, em um sentido superior e em esfera mais pura, tornaram-se inventores. Ou seja, inventaram a cabeça filosófica típica, e a posteridade inteira nada mais inventou de essencial a acrescentar (cf.NIETZSCHE, 1974, p.39-40).

O ocidente, em virtude do “milagre grego”, se reveste como único possuidor de um conhecimento milenar que chineses, árabes, judeus e outros povos mais antigos deixaram por herança para a humanidade e não somente para parte dela (ou seja, os gregos). O “gênio do povo grego” foi unir suas interrogações sobre a natureza à sua maneira de abordar a vida, mas origem do “espírito filosófico”, segundo Nietzsche, descobre-se nos pré-socráticos e nos trágicos gregos, pois, “tudo o que aprendiam queriam viver logo”. Comentando os textos de Tales, Heráclito ou Anaximandro, o filósofo considera que todos exprimem a realidade do mundo, sua atividade intensa, seu eterno devir. Ao contrário, Platão constitui o primeiro grande híbrido, pois, reúne e sistematiza os pensamentos de seus predecessores, com ele começa a decadência filosófica, segundo o filólogo.

O autor da obra comunga com Aristóteles quando diz que “aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, pois não se importavam com os bens humanos”, isto é, a predileção do filósofo antigo em dedicar ao improfícuo, marca o limite que distancia da prudência (cf. NIETZSCHE, 1974, p.41). Escrita em 1873, a obra supracitada desenvolve explicitamente os temas abordados em Nascimento da tragédia (1872). No entanto o pensamento de Nietzsche apresenta uma evolução, especialmente em relação à figura de Sócrates. Sócrates que pelo filósofo era considerado o típico herói, agora não passa de um “plebeu inculto” o que também se observa em suas obras posteriores (Crepúsculo dos ídolos), em que Nietzsche o estigmatizará como o primeiro decadente da história da filosofia.

Para Nietzsche, Tales é um mestre criador que sem uma “fabulação fantástica”, começou a ver a natureza em suas profundezas, Anaximandro se refugiava em uma “cidadela metafísica”, Heráclito não se empenhava em conhecer o homem por achar a preocupação com o devir mais importante e em Parmênides a dedicação com o vir-a-ser a questão por excelência. Com chave de ouro, Nietzsche aponta a dupla dinâmica Platão e Sócrates, os responsáveis pela soberba do logos, da razão que exterminou Dionísio e exaltaram exacerbadamente Apolo, as luzes da frívola racionalidade.

Porém, diante de todas as acusações levantadas por Nietzsche, façamos um retorno à questão inicial: Quem, em lugar da filosofia grega, prefere dedicar-se a egípcia ou persa, porque essas são talvez mais originais e, em todo caso, mais antigas? O autor prossegue a questão falando que “procede com tanta desatenção quanto àquelas que não podiam contentar-se com a mitologia grega, tão esplêndida e profunda, enquanto não reduziram as trivialidades físicas, sol, relâmpago, tempestade e nuvem, como seus primórdios, e que, por exemplo, pensam ter reencontrado na limitada adoração de uma única abóboda celeste, nos outros povos indo germanos, uma forma de religião mais pura do que a politeísta dos gregos, em suma o caminho para início como uma barbárie.

Mas em que contribui Nietzsche, com tamanho desencanto em relação ao mundo grego antigo? Especialmente em relação a Sócrates? Nietzsche parte do seguinte ponto: “reconheci Sócrates e Platão com sintomas de caducidade, como instrumentos da dissolução grega, como pseudogregos, como antigregos (Nascimento da Tragédia, 1872). Aquele consensus sapientium, isto eu compreendia cada vez melhor” (NIETZSCHE, 1974, P.337). Na sentença anterior, o filósofo coloca em jogo a autenticidade e utilidade da filosofia socrática e platônica, pois, a rota que a filosofia do ocidente segue após eles foi totalmente dessemelhante da filosofia contemplativa e ascética dos pré-socráticos e maiores ainda da filosofia poética e patológica de Homero, Hesíodo, Sófocles e outros.

A inversão do caminho que a filosofia faz, foi fruto de uma racionalização do que os antigos chamavam de sabedoria, ou o sapore, o gosto, o paladar filosófico deixa de ser leve e agradável para se tornar amargo, frio e calculista. Sócrates como o arauto da decadência dos sábios, o sentido destorcido do ser sábio esta presente na figura do ateniense retórico, lógico, moralista que com facadas de silogismo derruba seu adversário e prova não ser um idiota. Mas o que Nietzsche deve aos antigos? O filósofo responde que “aos gregos não devo nenhuma impressão de semelhante força; e, para dizê-lo diretamente eles não são para nós o que são os romanos. Não se aprende com os gregos seu modo é estrangeiro demais, e também fluído demais para ter um efeito de imperativo, de “clássico”(...) e prossegue escrevendo que “conseqüentemente Goethe não entendeu os gregos. Pois somente o mistério dionisíaco, na psicologia do estado dionisíaco enuncia-se o fato fundamental do instinto helênico, sua “vontade de vida”. O que o heleno garantia a si mesmo com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e consagrado ao passado; o triunfante sim
à vida, para além de morte e mudança; a verdadeira vida como sobrevivência coletiva pela geração, pelos mistérios da sexualidade. Para os gregos, por isso, o símbolo sexual era o símbolo do venerável em si, o verdadeiro sentido profundo dentro da inteira religiosidade antiga. Toda particularidade do ato de geração, da gravidez, do nascimento, despertava os mais altos sentimentos (NIETZSCHE, 1974, p. 352).

Por fim, Nietzsche desbravou o espinhoso caminho do desencantamento, este que o filósofo do martelo, expressão que ele autodenomina-se percorreu. Levantar o véu das antigas sabedorias gregas que na realidade não são provenientes do mundo grego (segundo o filósofo), mas são fruto de uma enciclopédia de conhecimentos árabes, egípcios, fenícios, chineses e de outros povos antigos foi uma árdua missão, porém, mais árdua é sua atitude de desmascarar a filosofia contemplativa e ascética dos pré-socráticos, a filosofia silogística e retórica de Sócrates e Platão (as colunas da filosofia do Ocidente) e desmontar ou melhor desconstruir todo o arsenal de respostas e soluções que possuíam os gregos com sua forma metafísica de explicar o mundo, a natureza e o homem, foi sem sombra de dúvida uma atitude pouco louvável, mas muito reveladora e audaciosa.


[1] Licenciando em Filosofia pela PUCPR.

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