sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A CASA DE SALOMÃO


BACON, Francis. Nova Atlântida. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 b.

A CASA DE SALOMÃO

Charles Fernando Gomes[1]

O sentido mais subentendido que encontramos em Nova Atlântida, concebe o propósito de Bacon (1561-1626) em apresentar um modelo ou a descrição de uma instituição, isto é, uma universidade instituída com o desígnio de empenharem-se na interpretação da natureza e produção de grandiosas e estupendas invenções, produções e obras que serão frutos e benefício para a humanidade. Na célebre Casa de Salomão ou Colégio dos Trabalhos dos Seis Dias (como batizou sua obra), o filósofo refletiu e formulou o império dos homens, em outras palavras, sua senhoria formulou um corpo de leis e pensou no melhor dos Estados, ou em uma comunidade exemplar, clássica e imperial. Trata-se de uma obra arquitetônica, e para este trabalho (em particular no que concerne à edição inglesa), Bacon assinou este lugar, tendo em vista a estreita afinidade (com uma das partes) da precedente História Natural segundo W. Rawley[2].

Somos homens atirados a terra (...) mas nos encontramos entre a vida e a morte, porque estamos além do Velho e do Novo Mundo; e só Deus sabe se voltaremos a Europa. Uma espécie de milagre nos trouxe aqui e só algo semelhante nos pode levar de volta (BACON, 1979, p. 242). O escritor inglês narra no princípio, o velejamento (à terra prometida por Deus) e posteriormente a perda da rota até o advento na ilha dos milagres, nas profundezas do coração de Deus. Foram fraternalmente acolhidos pelos moradores e principalmente pelo governante da aldeia celeste que os recebeu e explicou a origem de tamanha universidade técnica proferindo as seguintes palavras: Devereis compreender caros amigos, que entre os excelentes atos daquele rei, um acima de todos teve preeminência. Foi a fundação e instituição de uma ordem ou sociedade a que nós chamamos de Casa de Salomão, que consideramos a mais nobre fundação que jamais houve sobre a terra, e é o farol deste reino. Ela é dedicada às obras e criaturas de Deus. Pensam, alguns que leva o nome de seu fundador, algo modificado, como se fala. Portanto, entendo que leva a denominação do rei dos hebreus, que é famosa entre vós, e conhecido entre nós, pois temos muitas partes das suas obras que, entre vós, se perderam, a saber, a História Natural. Fala de todas as plantas, do cedro do Líbano ao musgo que cresce nas paredes, e de todas as coisas detentoras de vida e movimento. Isto me fez pensar que nosso rei, encontrando-se de acordo em muitas coisas com aquele rei dos hebreus (que viveu muitos anos antes dele, honrou-o com o nome desta fundação). E estou inclinado a ser desta opinião, porque descobri que, em antigos relatos, esta ordem ou sociedade é às vezes denominada Colégio da Obra dos Seis Dias. (BACON, 1979, p.249-250)

A finalidade da Casa de Salomão é o conhecimento das causas e dos segredos dos movimentos das coisas e a ampliação dos limites do império humano para a realização de todas as coisas que forem possíveis (BACON, 1979, p.262). O governador da cidade após estabelecer o objetivo da Instituição, isto é, relação da verdadeira organização, ele apresenta os preparativos e instrumentos de que dispõem para os trabalhos e descreve os vários empregos e funções atribuídas ao habitante como as normas, celebrações e ritos[3] que os moradores precisam observar e adotar como meta de vida na comunidade natural. Para a organização da pesquisa científica destacam-se os mercadores da luz, os homens do mistério, os mineiros ou pioneiros, compiladores, os doadores e benfeitores e os íntérpretes da natureza [4].

Da pesquisa científica e seus afazeres, o profeta da ciência moderna, reláta-nos também, todas as maravilhas naturais que encontrou na ilha (sobretudo as que servem ao homem) narrada por um padre (que visita à ilha de doze em doze anos) que escolheu Bacon para explicar e fazer a relação da verdadeira organização da Casa de Salomão. Ele descreve os métodos científicos que a ilha possui para: prolongar a vida, restituir a juventude, curar doenças consideradas incuráveis, aumentar e elevar a capacidade cerebral, fabricar novas espécies, transplantar uma espécie em outra, tornar os espíritos alegres e coloca-los em boa disposição, o poder da imaginação sobre o corpo ou sobre o corpo de outrem, acelerar o tempo no que diz respeito às maturações e clarificações, acelerar a putrefação, cozimento e germinação, fabricar adubos ricos para a terra, transformar substâncias ácidas e aquosas em substâncias gordurosas e untuosas, produzir novos alimentos a partir de substâncias que não são atualmente utilizadas, fabricarem novos fios para vestuário, novos matérias, além de papel, vidro, etc. (BACON, 1979, p. 268-272).

Terras, torres, lagos de água doce e salgada, oceanos, máquinas para multiplicar e intensificar a força dos ventos, poços e fontes artificiais de banho (ele destaca e classifica a água como ­água do paraíso, saudável e soberana para a vida e a saúde). Predições naturais, ilusões de sentidos, maiores prazeres para os sentidos, minerais artificiais e cimentos além de espécies e animais para uso científico e cruzamento de espécies diversas para experimento com insetos, pássaros e mamíferos (...) fábrica de bebidas, pães, manjares raros, vinhos (tudo saudável para os habitantes), ervas medicinais e farmácias. E prossegue; fazemos previsões de doenças, pragas, tempestades, terremotos. Porém, adverte-o, deveis saber que comumente todos os produtos enumerados são usados em todo o reino, mas, os que são de nossa própria invenção são guardados como modelos e amostras. (BACON, 1979, p.273-278)

Bacon concebeu a idéia de uma sociedade de homens unicamente devotados à pesquisa da ciência (verdade). Seus planos englobam todas as partes dos conhecimentos humanos com edifícios consagrados a essas experiências, buscando a maior exatidão, clareza e funcionabilidade do experimento científico. Neste lugar, todos os aparelhos, instrumentos e máquinas que nos permitem aumentar nossas forças ou multiplicar nossos meios de observar, de conhecer ou produzir, reúnem–se para a instrução, tanto do filósofo quanto do artista. O amor da verdade aí congrega os homens que o sacrifício das paixões comuns tornou dignos dela. E as nações esclarecidas, conhecendo tudo o que ela pode para a felicidade da espécie humana, aí fornecem ao gênio os meios de manifestar sua atividade e suas forças. (JAPIASSU, 1995, p.135)

O Imperador da ciência reuniu todos os homens numa mesma atmosfera científica, da qual se preocupam em semear sua razão para cultivá-la com maior irradiação das luzes do esclarecimento, do crescimento e do progresso tecnológico, isto é, ele descreve um oásis da natureza utilitarista, utilizar o melhor da natureza em seu labor, porém de um modo responsável, consciente e interligado com a combinação dos esforços e dos resultados comuns, participativos e cooperativos para obter empreendimentos mais amplos (além de publicá-los para um bem comum). O filósofo estabelece uma linguagem universal, a execução de um monumento colocando as ciências ao abrigo de uma revolução geral do globo. Todos esses objetos seriam reservados a uma associação mais ou menos com o mesmo grau de luzes e liberdade, não encontraria obstáculos e garantiria, entre todas as ciências, entre as artes, entre as nações um equilíbrio de conhecimentos, de indústria e de razão necessária ao progresso e à felicidade da espécie humana. (JAPIASSU, 1995, p.136)

Bacon se revela um escritor literário com olhar lúdico e sonhador nesta obra que enaltece o desenvolvimento científico em um planeta angelical habitado por um povo messiânico. Além do grande Espírito científico que paira sobre a ilha, alia-se também a credulidade, a fé, o respeito, a cooperação e os princípios cristãos como a castidade, obediência, reverência e glorificação. A fantasia baconiano é apresentada em sua pureza sem a tentação de buscar a causa primeira e o remédio ou resposta para todas as coisas (como Aristóteles) ou de possuir ou desvelar mistérios sagrados e divinos (como os escolásticos). Sua revolução industrial nasce de um sonho regido por uma regra ética aonde os experimentos são levados a público, revelados ao Estado (que é generoso, acolhedor e justo) e homenageiam os seus reais inventores (sejam nativos ou estrangeiros).

A Nova Atlântida preconizou uma enciclopédia da natureza, Bacon foi o João Batista que trombeteou a instauração da Boa Nova, isto é, o domínio do homem sobre a natureza, a história da natureza modificada pela mão humana, a filosofia do progresso e a revolução industrial, progressiva e tecnológica libertando o conhecimento das abstrações filosóficas tradicionais da tutela das autoridades régias e eclesiásticas. Porém, não nos deixa desaperceber que seu pensamento tenha sido propositalmente esquecido por dois séculos[5] (nos séculos XVII e XVIII a filosofia empirista e pragmática é substituída pelas filosofias racionalistas e idealistas e Bacon só retorna no positivismo do séc. XIX) e tenha retornado apenas com Augusto Comte (1798-1857) no final do século XVIII e início do XIX em seu Discurso sobre o espírito positivo, que considera Bacon (junto com Galileu e Descartes) fundador da filosofia positiva, esta que rejeita a redução dos fenômenos a um só princípio (Deus, natureza e outro equivalente) e acredita na ciência como investigação do real, do certo e do indubitável, do precisamente determinado e do útil, do ver para prever e no uso efetivo do poder. (COMTE, 1978, p. 90)

Tomamos nota também da concepção de Leonardo Boff em Ecologia grito da Terra, grito dos pobres. “Sobre a filosofia baconiana, Boff afirma que Francis Bacon proferia que devemos ‘‘subjugar a natureza, pressiona-la para nos entregar seus segredos, amarrá-la a nosso serviço e fazê-la nossa escrava”. Com isso se criou o mito do ser humano, herói desbravador. Prometeu indomável, com o faraonismo de suas obras (...) ele não se entende junto com ela (natureza), numa pertença mútua, como membros de um todo maior.(BOFF, 1995, p.24-25)

O homem, como ministro e intérprete da natureza. Talvez a desconhecida visão do teólogo frente às obras e pensamentos de Bacon tenha-lhe passado despercebida à frase acima citada que corresponde ao primeiro aforismo do Novum Organum, ou até mesmo tenha sido errônemante interpretada. No empirismo baconiano o saber possui um meio para o fim, um realismo metodológico e científico para que o ministro da natureza seja um conhecedor, um investigador e acima de tudo um benfeitor, isto é, a epistemologia baconiana é experiência prática do conhecimento, que não busca somente pensar, escrever, poetizar e contemplar o bem, mas fazê-lo a partir de uma cooperação de cientistas, de tecnologia apropriada e responsável e intencionando o progresso desta busca na natureza, como afirma Paolo Rossi (comentador) um utilitarismo da veracidade científica, uma verdade útil.

Para Bacon a sabedoria deste mundo deve nos levar ao perfeito conhecimento das coisas divinas e não o inverso, como os escolásticos que distanciam Deus das escrituras da natureza ou Aristóteles o Anticristo, segundo Bacon. Na Casa de Salomão o empirista preconiza uma sociedade de sacerdotes, cientistas e cristãos, submetendo seus trabalhos aos ensinamentos do evangelho, eis a síntese ideal entre ciência e cristianismo. Para John Dewey Bacon fez o trajeto dos segredos da natureza, o método da abelha que extrai o sulco das flores do campo e em seguida os transforma em mel. (DEWEY, s.d, p.57)

Por fim, a Nova Atlântida representa os mais profundos e ambiciosos objetivos de Bacon, e isto está claro no retrato da obra, isto é, o arauto da ciência moderna finaliza sua vida escrevendo uma literatura que abarca toda a navegação filosófica, teológica e científica de suas propostas para o reino do homem no infinito e agitado oceano da história, esta que caminha junto com o pensamento e se insere no progresso dos grandes homens (como Bacon) e suas grandes idéias que perpassam os séculos e suas projeções, isto é, o pensamento que é sempre inovador quando se refere à vida, a historicidade e a evolução do homem.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfred Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BACON, Francis. Nova Atlântida. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 b.

BACON, Francis. Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. 2. Ed. São Paulo: Abril cultural, 1979b.

BOFF, Leonardo. Ecologia grito da Terra, grito dos pobres. Ed. Ática S.A. São Paulo-SP, 1995.

COMTE, Augusto. Discurso sobre o Espírito Positivo. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. 2. Ed. São Paulo: Abril cultural, 1978b.

Dewey, John - A Filosofia em Reconstrução. São Paulo. Companhia Editora Nacional. s/d

FARIA Ernesto. Dicionário Escolar Latino-Português. 2. ed. Rio de Janeiro: MEC/DNE, 1956·.

JAPIASSU, Hilton. Francis Bacon - O Profeta da Ciência Moderna. São Paulo. Editoras Letras&letras, 1995.


ROSSI, Paolo. Bacon e Galileu: A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da RevoluçãoCientífca.SãoPaulo:UNESP,1992.

ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


[1] Licenciando em Filosofia pela PUCPR

[2] Trabalho inacabado escrito por Francis Bacon, lorde de Verulam, Visconde de St. Alban. William Rawley foi secretário particular de Bacon e editor de suas obras póstumas. A Nova Atlântida foi por ele traduzida para o latim e publicada em 1627, no fim do volume da Sylva Sylvaram, segundo as indicações deixadas.

[3] Seus rituais e celebrações são manifestações solenes e sagradas (com preces, cerimônias e benção) da comunidade. Começam com o cantar de um hino cujo tema é sempre a glorificação de Adão, Noé, Abraão e a natividade de nosso Senhor. Glorificação esta devida, a Adão e Noé terem sido os primeiros a povoarem o mundo e Abraão ser o Pai da fé. Na ilha de Bensalém habitam judeus, muçulmanos e pessoas de diversas nações e etnias, porém todos são cristãos (amam a Cristo).

[4] Para a organização da pesquisa científica quanto aos diversos encargos e ofícios de nossos discípulos, acontece o seguinte: doze navegam para países estrangeiros sob a bandeira de outras nações (já que escondemos a nossa), trazendo-nos livros, súmulas e modelos de experimentos de todas as outras partes do mundo. Nós os chamamos de mercadores da luz.

Temos três que recolhem os experimentos de todas as artes mecânicas, das ciências liberais, e ainda das práticas que não chegaram ainda às artes. A estes chamamos de homens mistério.

Temos três que tentam novos experimentos dos quatro grupos precedentes, organizando-nos em títulos de pioneiros ou mineiros.

Temos três que examinam os experimentos dos quatro grupos precedentes, organizando-nos em títulos e taboas, para levar luz à dedução das observações e axiomas deles extraídos. A esses chamamos compiladores.

Temos três que examinam os experimentos dos seus condiscípulos, procurando uma forma de extrair coisas de utilidade para a vida humana e para a ciência, a esses chamamos de doadores ou benfeitores. Temos três que sintetizam as descobertas anteriores, feitas por experimentos, em observações, axiomas e aforismos de maior generalidade. A esse chamamos de intérpretes da natureza

[5] As controvérsias no pensamento de Bacon na concepção de alguns pensadores no decorrer dos séculos XVII ao XX: (JAPIASSU, 1995, p. 60-70).

· Thomas Hobes trabalhou com pensamento baconiano em 1620, acreditava que a felicidade dos homens passa por uma política e encontramos seus fundamentos na ciência;

· Hegel, Marx e Engels atacaram o idealismo utópico das proposições de Bacon;

· Augusto Comte resgata Bacon quando diz que o poder seja necessariamente proporcional ao conhecimento;

· Séc. XVII e XVII, período racionalista e idealista;

· Na metade do Séc. XVII E XVIII foi considerada uma espécie de teórico ou ideólogo da socialização das ciências como modo de pesquisa;

· Koyré, Bacon foi apenas o arauto da ciência moderna;

· K. Popper, O movimento baconiano é um gigantesco engano (...). Preocupado com discussões sobre a lógica da descoberta científica e pouco atenta a perspectiva histórica, isto faz Bacon desempenhar o papel de bode expiatório;

· Thomas Kuhn. Foi à figura faustiana do mago, interessado em controlar a natureza;

· Roberto Boylé. Bacon constituiu a figura mesma da transição entre o mago paracelso e o filósofo experimental;

· Diderot dedicou-lhe a Enciclopédia e Emanuel Kant dedicaram-lhe a Crítica da Razão Pura. Ambos retomam a idéia de coletividade sábia de Bacon, de uma república científica trabalhando para a felicidade universal, para o bem da humanidade;

· Arthur Schopenhauer. De modo algum concordamos com Bacon de Verulam, quando opina que todos os movimentos físicos e mecânicos dos corpos só se seguem depois de uma percepção prévia nesses corpos;

· John Dewey em A Filosofia da Reconstrução afirma: Devemos a Bacon a concepção progressista da ciência.

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